Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo
Atenção: esta reportagem trata de saúde mental e suicídio — que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas por dia e pode ser acionado pelo telefone 188 (ligação gratuita) e neste site, ou busque a unidade de saúde mais próxima, que você pode encontrar por meio do Mapa Saúde Mental.
Ao longo de seis anos, 821 membros das forças de segurança pública da ativa tiraram a própria vida no Brasil, sendo que 62 deles cometeram suicídio após matarem outra pessoa. Apenas no ano passado, o número de registros das chamadas mortes autoprovocadas subiu 13,4% em relação a 2022, segundo boletim lançado nesta quinta-feira (26/9) pelo Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES).
Dentre as corporações, a Polícia Militar lidera as notificações, com 470 vítimas entre 2018 e 2023. Em seguida, estão Polícia Civil e Perícia (156), Polícia Penal (104), Forças federais (35) e Corpo de Bombeiros Militar (32). Os dados foram coletados a partir de pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação. Neste ano, o levantamento também incluiu as guardas municipais das capitais brasileiras, que somaram 23 vítimas da ativa.
“São profissionais que saem de casa, enfrentam diversas situações de violência, veem seus colegas morrerem e já é uma profissão, por si só, muito difícil”, aponta Fernanda Cruz, pesquisadora do IPPES e coordenadora do estudo.
Segundo a pesquisadora, a prevalência de casos entre agentes que ainda estão trabalhando na corporação indica que o ambiente profissional pode ser um dos fatores que gera o adoecimento. “Existe uma série de demandas em relação à forma como acontecem as relações internas: há esses processos de promoção muitas denúncias de assédio moral dentro das instituições, jornadas extenuantes, punições formais e informais utilizadas amplamente”, exemplifica.
Essa é uma das hipóteses, por exemplo, do que levou à morte a escrivã Rafaela Drumond, de 31, anos, da Polícia Civil de Minas Gerais em 2023. Na época, como mostrou a Ponte, nem a família da servidora tinha noção do sofrimento que ela estava passando até virem à tona vídeos e áudios em que Rafaela relata sobrecarga de trabalho, exaustão e perseguição, além de reclamar das condições de trabalho. No ano passado, um delegado suspeito de omissão em relação a Rafaela fez um acordo com o Ministério Público para pagar multa de R$ 2 mil e a investigação contra um inspetor suspeito por assédio foi arquivada.
O caso dela, porém, não está nos dados oficiais obtidos pelo instituto. Isso porque o governo mineiro, sob a administração de Romeu Zema, considera dados de suicídio de policiais como de “natureza sensível” e parte de um rol de informações colocadas sob sigilo por cinco anos, decretado em 2021. Essa informação só foi desclassificada, ou seja, passível de fornecimento, no início deste mês no caso de policiais penais e de agentes socioeducativos. A Ponte procurou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (SEJUSP), mas não teve resposta.
Minas Gerais está em segundo lugar, atrás de São Paulo, entre os estados com os maiores números de mortes autoprovocadas em números absolutos, com 86 vítimas, sendo 73 da ativa. Isso significa que o número pode ser maior se a sociedade tiver conhecimento de casos que aconteceram a partir de 2021. “Eu fico bastante preocupada porque é uma informação de interesse público, muito importante para a formulação de políticas públicas, e a gente não tem a garantia de que vai ter acesso aos dados todos os anos”, critica Fernanda.
Como a Ponte adiantou em março, São Paulo lidera os registros de suicídio e teve recorde na Polícia Militar no ano de 2023. Para a pesquisadora, por conta de o governo estadual ter uma tradição maior de divulgação de dados, ainda que incompletos, é possível dizer que houve de fato um aumento de vítimas e que uma exposição maior dos policiais a uma política de combate se reflete nos números de suicídios. “Existe toda uma literatura sobre esse tema, não só internacional, que mostra que a política de enfrentamento, o convívio com as situações de risco e de morte são componentes importantes do adoecimento mental”, afirma.
Fernanda elenca a dificuldade de se obter dados sobre todos os casos de forma oficial no país como um obstáculo para se compreender com profundidade o perfil e as dinâmicas que levam os profissionais a tirarem a própria vida.
O esforço, feito pela pesquisa este ano, de trazer dados sobre as guardas municipais das capitais, diante das eleições, também serve para dar visibilidade e discutir o tema. “O retorno que a gente teve foi de que parte considerável das instituições não tem dados, não compilam os dados”, alerta a especialista. “É importante a gente pensar isso dentro de um processo em que as guardas municipais estão se aproximando mais de um formato militarizado”.
A Ponte mostrou em um especial este mês como a militarização tomou conta das guardas civis a partir de propostas eleitoreiras, descaracterizado sua função preventiva e de proteção do partrimônio para um modelo eminentemente repressivo. Para Fernanda, essa aposta é prejudicial aos agentes. “A gente vê as guardas se equipando bastante, em alguns municípios com armas de grosso calibre, tentando copiar um modelo que a gente viu no que deu no caso das polícias civis e militares”, sinaliza.
A Ponte, por meio do projeto De Olho na Polícia, mostrou que 17 estados não divulgam espontaneamente informações sobre mortes de policiais e, entre os que divulgam, poucos trazem a questão do suicídio.
No mês passado, a reportagem adiantou parte dos dados do boletim do IPPES sobre os homicídios cometidos por agentes de segurança seguidos de suicídio: foram 67 vítimas em seis anos. De acordo com o instituto, os casos em geral estão relacionados a uma dinâmica de violência de gênero, já que a maioria das pessoas assassinadas antes de o policial se suicidar são mulheres com quem eles tinham alguma relação afetiva.
A pesquisadora também destaca uma subnotificação nos casos de profissionais inativos, ou seja, os que se aposentaram. Nos números levantados, foram 226 vítimas em seis anos, sendo sendo 221 casos de suicídio e cinco de homicídios/feminicídios seguidos de suicídio.
“A gente teve esse retorno das instituições de que muitas delas, a maior parte, não continuam acompanhando os profissionais depois que eles passam para inatividade”, explica. “É importante a gente destacar que no caso das polícias militares o serviço de saúde atende também os dependentes e os policiais inativos. Então, se esse policial continua utilizando o serviço de saúde da instituição, continua tendo porte de arma, por que não continuar acompanhando esse profissional?”, questiona.
Suicídio: Quase sem psiquiatras
O IPPES ainda solicitou informações sobre profissionais da saúde presentes nas corporações para atender os agentes: psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e outros correlatos. São Paulo, por exemplo, tem o maior número absoluto de psicólogos na PM (188), mas nenhum psiquiatra. A Polícia Civil do estado também não possui nenhum.
Só nas PMs, 16 estados informaram terem psiquiatras à disposição dos agentes na corporação. Nas Polícias Civis, seis; nas Perícias, dois; nos Corpos de Bombeiros Militar, sete; nas Polícias Penais, três; e nas Forças federais, nenhum.
Fernanda Cruz diz que há estados que informaram fornecer esse atendimento por convênios ou fora da instituição, mas o indicador acende alerta pela forma como a saúde mental dos agentes tem sido tratada. Para ela, é preocupante não haver um número suficiente de psiquiatras que atendam exclusivamente as corporações.
“Se a gente olhar o conjunto dos profissionais, a minha sensação é de que é insuficiente esse número. E que, em muitas instituições, ou não se tem nenhum psiquiatra ou tem um único para a instituição inteira. Por incrível que pareça, a realidade das polícias militares é melhor nesse sentido, porque se a gente olha as outras polícias a presença é ainda menor”, denuncia.
A pesquisadora pondera que não basta aumentar o número de psiquiatras. “A gente precisa entender o que está levando esses profissionais ao adoecimento e o que a gente precisa fazer para evitar o adoecimento. E aí estou falando de uma série de questões que não estão relacionadas só à assistência ao policial que está sofrendo, mas em se criar um ambiente que não seja adoecedor.”
“Não basta cuidar do policial que está doente, é preciso olhar para o que precisa ser feito para que o ambiente não o adoeça mais”, completa ela.
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