Por Matheus Pichonelli
Todo mundo tem uma música favorita do Kid Abelha. Mesmo que não admita em voz alta.
A minha é “Seu espião”. Escrita por Herbert Vianna, Leoni e Paula Toller, vivia nas estantes das canções românticas até outro dia, quando fui ao cinema conferir “Vidas passadas”. Já chego lá.
A letra traz a angústia de quem tenta, e não consegue, acessar os sonhos da pessoa amada. Nas lacunas da história, podemos visualizar um alvo controlado da cabeça aos pés. Menos quando dorme.
É o que angustia o rapaz da história.
“Ver você dormir me corta o coração. O seu sorriso é sonho ou traição? O que você sonhou eu nunca vou saber. Me dá uma pista que eu possa percorrer. Não que eu seja ciumento. É apenas precaução”.
Daquele jeito mansinho à brasileira, o predador em nota musical assume a feição pedinte para acessar um lugar indevido. Ele se questiona quantos beijos de amor alguém pode sonhar em mil histórias onde não pode entrar. E então suplica: “deixa eu ler seu pensamento. Deixa eu ser seu espião”. Tudo antes de concluir que “alguém tem que controlar o seu coração”.
Na voz da Paula Toller, a armadilha com o selo de “amor romântico” parece até suave. Mas a lista das plataformas de música precisa de um rebranding. O que é romance na música seria chamado hoje de colonização dos afetos.
Aquilo não era amor, era cilada, diriam os poetas do Molejão.
Quem já frequentou viodeolocadoras deve se lembrar das seções de filme distribuídas pela loja. Tinha a ala de terror, de suspense, de comédia e de romance. E um campo de bordas mais ou menos borradas chamado “drama”.
‘Vidas passadas’
“Vidas passadas” é um dorama, neologismo para drama coreano, país de origem da diretora Celine Song e dos atores Greta Lee e Teo Yoo, que interpretam Nora e Hae Sung.
Nora é o nome ocidentalizado que a protagonista assume quando se muda com os pais para o Canadá e, depois, para os Estados Unidos.
A mudança representa uma quebra brusca, quase violenta, em sua trajetória. De um dia para o outro ela sobe uma escada em uma via bifurcada e deixa para trás o melhor amigo, Hae.
Eles passam anos sem se falar até que Mark Zuckerberg decide criar uma rede para reunir amigos distantes. É pelo Facebook que eles, às portas da vida adulta, voltam a se comunicar.
E é por lá que decidem pelo segundo rompimento, este calculado.
Naquela nova versão, Nora era então uma jovem escritora cheia de planos e ambições que seriam subtraídos ao longo do tempo. Primeiro ela sonhava (aqui de olhos abertos) com um Nobel da Literatura. Depois, com um Pulitzer. Em seguida, já não sonha. Hae caberia em todas essas etapas, mas algo o prendia no país de origem.
Entre elementos e lacunas oferecidas por Celine Song, não conseguimos saber se Nora sente falta “só” do amigo de infância, da infância em si ou do grande amor da vida. Ao menos o amor de uma vida “passada” e encerrada no momento em que Hae decide ficar onde está.
(Não é um detalhe que, já na faculdade, ele opte por fazer estágio na China para aprender mandarim; o mundo dez anos depois da primeira separação era outro e já não tinha na América um eixo central).
Tanto livros quanto filmes da categoria amor romântico contam histórias de quem rompeu tudo — traços de origem social, proibições explícitas, distância, guerras, noções de tempo e espaço e até juras de casamento — para viver um grande amor e viver felizes (no plural) para sempre.
O protótipo do fim ideal é a cena derradeira de “A primeira noite de um homem”, em que o personagem de Dustin Hoffman decide ouvir o coração e foge com a noiva prometida a outro homem, mandando às favas as convenções mundanas ao som de Simon e Garfunkel. Na mitologia ocidental, somos apenas corpos movidos pelo coração e música romântica.
Nada disso acontece entre Hae e Nora (desculpem o spoiler). Eles nunca saberão o que havia de verdade naquele balaio de afetos guardado e decantado em barril porque não souberam o que era acordar despenteados no dia seguinte e combinar quem pagaria a conta de luz ou trocaria a fralda da criança.
O sonho americano de Nora se resume a uma vida comum em um apartamento de Nova Iorque, onde administra a vida a dois e as frustrações de uma época — ao menos as dela e as do companheiro Arthur, um escritor igualmente desiludido que joga videogame num sábado à noite interpretado por John Magaro.
Arthur não é o protótipo do homem violento e enciumado que impede Nora de reencontrar o amigo que vai colocar em risco o que o Green Card uniu e o homem, em tese, não separa.
A dada altura, ele, roteirista, admite que seria clichê demais assumir o papel do homem branco e malvado que proíbe a companheira asiática de viver um grande amor com o príncipe de sua terra. Então, antes por censura do que por segurança, performa uma benevolência desconstruída em forma de autorização.
Não sem antes questionar se ela sentia desejo pelo velho amigo, numa sinalização de que, naquele relacionamento a dois, outros formatos são permitidos e compartilhados — desde que relatados em interrogatórios, como uma prestação de contas. Nora jura que não. E provavelmente não mentiu.
Mas o que Arthur quer acessar não é a confissão. É o sonho, como na música dos primeiros parágrafos. E aqui não é o sonho como analogia da ambição, mas o do campo da inconsciência explorado por Freud.
Quando ainda falava com Hae por videochamada, Nora ouve o tempo todo que está perdendo o sotaque coreano. A linguagem entre eles já não é a mesma. Mas, quando ela sonha, sonha em coreano, diz Arthur — ele sim confessando o desespero por ver a pessoa com quem deveria ser feliz para sempre acessando um lugar onde ele, como na música, também não pode entrar.
Aquele diálogo é perturbador, ao menos para os dois, por uma razão simples.
Mesmo com a linguagem materna enferrujada, Nora passou a vida acreditando na tradução exata de uma palavra que só existe em sua terra: In-Yun. Mal resumindo, trata-se de uma somatória de vivências acumuladas em vidas passadas que levam uma pessoa a reconhecer a outra como um par na existência presente.
É uma espécie de “destino” meritocrático, que você resgata na vida seguinte, levando ao paroxismo a melô do ghosting cantada por Chico Buarque em “Futuros amantes”.
Talvez (e aqui é mera especulação) Nora tenha vivido seus dias em dúvida sobre quem era a alma gêmea protagonista daquela história: se alguém elaborado em uma vida passada ou naquela em direção a uma próxima. Em outras palavras: Arthur ou Hae?
Hae também acredita em destino. E a presença dele em Nova Iorque, um lugar estranho para ambos, é a recordação de que tem coisas que só falamos e entendemos de verdade na língua materna. E há mais noções culturais envolvidas no conceito de amor entre Seul e Nova Iorque do que supõe a distância entre uma cidade e outra.
Na terra de Arthur, amor é um conceito criado no estúdio de Hollywood segundo o qual só seremos felizes e completos quando encontrarmos uma outra metade, fale ela a língua que falar. E, segundo este preceito, tudo aquilo que se sente e se deseja se sobrepõem a convenções, traços culturais e sociais amontoados entre um corpo e outro.
Spoiler 2: pura lenda (e posso provar indicando o podcast “É tudo culpa da cultura”, do antropólogo Michel Alcoforado, e que tratou do tema “amor” em sua primeira temporada).
É Arthur quem questiona, em uma cena-chave do filme: e se tudo fosse só um conjunto de aleatoriedade? E se ele e Norma estivessem juntos apenas porque, num momento de vulnerabilidade, foi ele quem se apresentou para preencher uma lacuna deixada pela segunda ruptura entre ela e Hae?
Sim, especula ele, poderia ser qualquer outra pessoa que estivesse na mesma residência para jovens escritores e que falasse sobre os mesmos livros, filmes e desejos. Por um acaso, foi ele. Poderia ser qualquer outro barbudinho desconstruído e metido a escritor disposto a escrever qualquer história que soasse tão verossímil quanto a ideia de destino.
Para ser justo: Arthur não é só o marido que se ressente por não acessar a linguagem dos sonhos da companheira. Ele é também quem a espera na porta de casa quando ela volta destroçada — não por ver o grande amor da vida ir embora pela terceira vez, mas por tropeçar em cada destroço dos conceitos de amor, destino, romance e todos os outros léxicos que modulam e dão sentido a uma vida que, no fim, se resume a trabalho, encontro, desencontro, expectativa, realidade e sonhos (de olhos abertos) reajustados e, vá lá, um pouco de sorte.
Essa aleatoriedade nomeada como destino para performar algum sentido, proposta por Arthur como uma chave de compreensão sobre decisões tomadas a quilômetros de distância do que convencionamos a chamar de “coração”, é, por ironia, o tema do filme vencedor do último Oscar.
“Vidas passadas” é quase um “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” para adultos: em vez de projeção sobre destinos concretizados em tantas bifurcações em direção ao metaverso, ele se fixa na terra firme da decisão inicial e se apresenta apenas como “aquilo que poderia ter sido e não foi”. A isso damos alguns nomes. Alguns chamam de amor. E habitam ainda iludidos nas prateleiras de filmes “românticos” — o que “Vidas passadas” (spoiler 2) não é.
Deixe um comentário