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Janaína

Da primeira vez que vi Janaína, ela sorria com seus óculos escuros na entrada do velho salão de eventos da USP Maria Antônia. Olhou pra mim e disse alegre e sinceramente: olha aí o historiador midiático. Eu ri de volta. Há tempos queria conhecer (e entrevistar) a historiadora que dedica sua vida e sua causa profissional à história e à memória dos mortos e desaparecidos pela Ditadura Civil-Militar (1964–1985). Janaína de Almeida Teles foi sequestrada pelos agentes da Ditadura quando tinha 5 anos. Junto ao seu irmão, Edson, foi obrigada a ver seus pais, Maria Amélia e César Teles, serem brutalmente torturados por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Graças ao esforço de pesquisa, à resiliência de Janaína e sua família, Ustra — o facínora chefe das operações de tortura e assassinato do DOI-CODI de São Paulo — foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pelos crimes horrendos que cometeu.

A farda e a farsa do herói 

No entanto, o Brasil nunca foi mesmo para principiantes. Mesmo sendo um torturador condenado, Ustra ainda é tido como “herói nacional” por um número significativo de brasileiros. De muitas maneiras, a farsa de seu heroísmo sustentou o golpe de 2016 e a própria farsesca eleição de Jair Bolsonaro, o golpista dos golpistas. É impressionante! Como explicar a ultrajante miséria material e moral desse país? Depois de 60 anos do golpe militar de 1964, somos constantemente assombrados por novas tentativas de golpe e sequer temos uma esfera pública que se permite debater uma ferida tão dolorida, uma chaga aberta e que sangra a história inteira desse país. Eu fico me perguntando, cidadão comum, professor e historiador, que país consegue com uma desfaçatez sem igual espezinhar e ostentar tantos cadáveres, tantos mortos, tantos assassinatos? A pergunta de “milhões”, não? Para começar a respondê-la, cabe aos historiadores e historiadoras, por indignação e dever de ofício, lembrar alguns fatos básicos.

Inventados pela tortura da escravidão 

Esse país foi inventado pela escravização e tortura de seres humanos. Nosso sistema político, social e financeiro foi montado, desde 1822, na escravização e no tráfico ilegal de africanos. Nunca em tão pouco tempo, tantos seres humanos foram tão brutalmente escravizados como na história da formação do Brasil entre 1808 e 1850. Isso é um dado básico. Mas estrutural. A história inteira de todos e todas nós, dos bancos e banqueiros aos barcos e barqueiros, está profundamente estruturada pela escravidão. Da historiografia acadêmica aos best sellers de jornalistas, a história da escravidão brasileira está mais do que em evidência, ela é a inteira evidência de uma nação.

Os republicanos de farda e farsa 

Inventores da República, em 1889, os militares estavam mais preocupados com a defesa da “ordem e do progresso” do que com o destino dos trabalhadores pretos e pardos do pós-abolição. Observe os marcos da história republicana e perceba o óbvio: um golpe atrás do outro. Da proclamação ao Estado Novo, das ameaças da UDN ao golpe de 64, da chantagem contra as “Diretas Já” em 1984 ao golpe de 2016. Pequenos recreios democráticos numa escola inteira de autoritarismo. Bombas de avião na cabeça da população, censura, exílio, perseguição, tortura. E mais: uma história de invasão e extermínio da população indígena que remonta ao período colonial e que continua até o exato momento em que alcança os olhos, ouvidos e sentidos de quem lê estas linhas. Compreendem agora a luta das Janaínas, das  Mariellys e Amelinhas?

 A busca, a esperança

Janaína entra no estúdio do ICL. Narra corajosamente sua luta e sua busca. Da vala clandestina do cemitério de Perus ao deserto do Atacama, sua inabalável busca por justiça e direito à memória se junta às outras tantas e centenas de mulheres que buscam seus parentes assassinados e desaparecidos pelas ditaduras latino-americanas. A busca de Janaína é fundamentalmente a luta de todas as mães, filhas, irmãs, tias e amigas. A esperança de Janaína é que o Brasil, 60 anos ou 200 anos depois, não seja mais sinônimo de tortura. E a sua, qual é?

A ex-presidenta Dilma Rousseff se emociona ao receber o relatório final dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade em 2014. Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

* Confiram a entrevista completa de Janaína Teles ao “Provocação Histórica.”

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