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Carta para Vini Jr.: Resista e siga em frente, por todos nós!

O racismo destrói nossa saúde mental, dilacera nossa autoestima, por vezes nos faz esquecer quem realmente somos
26/03/2024 | 18h06

Por Luana Tolentino*

Querido Vini Jr.

Estamos a poucas horas do amistoso contra a Espanha, em que mais uma vez você vestirá a camisa 10, imortalizada pelo Rei Pelé. Espero que o seu coração esteja em paz, feliz e tranquilo.

Gostaria de usar esta carta apenas para dizer o quanto o seu futebol me encanta, o quanto fiquei emocionada com o lance entre você e o Endrick, que resultou no gol contra os ingleses no último jogo da Seleção. Infelizmente, não é isso o que me traz aqui.

Confesso que tentei fugir de todas as maneiras da entrevista que você concedeu na segunda-feira, na qual chorou ao falar do racismo que sofre cada vez que entra em campo, em solo europeu.

Fugi, pois não queria me deparar com a sua dor, que também é minha e de tanta gente; e que de tão latente, fere, rasga a carne.

Acostumada a escrever cartas, confesso também que a lembrança da sua fala pausada, da sua voz embargada e de suas lágrimas escorrendo pelo rosto dificulta a minha escrita. Sinto-me com o coração apertado, quase incapaz de redigir esse texto. Escrevo e apago. Uma, duas, três vezes…

Mas insisto, pois não posso permanecer em silêncio, assim como tem feito a maior parte dos clubes, da imprensa, da população e da justiça espanhola. Por mais que seja difícil, que me doa, preciso escrever. Não posso me calar. O silêncio e a omissão, atitudes utilizadas pela FIFA desde que os ataques racistas contra você começaram, não cabem a mim. Não cabem a todos que têm o mínimo de decência e respeito pela dignidade humana.

Muito já se avançou na luta contra a desumanização racial no Brasil e no mundo, graças também a pessoas como você. Porém, sempre acho que ainda faltam reflexões a respeito do que o racismo causa, destrói, rouba das pessoas, conforme aprendi com o sociólogo Jessé Souza.

Dentre várias coisas, o racismo roubou de mim a capacidade de aprender Matemática. Embora já tenha contado essa história em outra carta, tomo a liberdade de partilhá-la com você.

Eu era apenas uma menina de 9 anos. Estava na 3ª série do Ensino Fundamental. Na escola, uma colega me chamava de macaca todos os dias. Na hora do recreio, da merenda, das lições na biblioteca. Eu não tinha sossego nem mesmo enquanto rezávamos a oração do Pai-Nosso, antes do início das aulas. Ela me perseguia, me ofendia, inclusive quando eu pegava na bola durante as atividades de Educação Física.

Até que um dia criei coragem e contei tudo o que estava acontecendo para minha professora. Eu tinha esperança de que ela fizesse algo para cessar todo aquele sofrimento, assim como eu imagino que você espera que a FIFA, entidade maior do futebol, faça.

Não foi isso o que aconteceu. Após ouvir o meu relato, a professora me colocou diante da turma e ordenou: “Olhem bem para a Luana! Vocês acham que ela se parece com uma macaca?”

Eu me vi em meio a um dos piores momentos de toda a minha vida. Naquele instante, senti o meu corpo cair em um abismo que parecia não ter fim. Ao fazer essa pergunta, a professora deu uma espécie de “autorização expressa” para que todos os alunos me humilhassem, me chamassem de macaca, imitassem sons de símios, e não reconhecessem a minha condição de ser que sente e sonha. Diante da algazarra que se formou dentro da sala, ainda fui culpabilizada por tudo o que aconteceu. Aos berros, ela disse: “Volte já para o seu lugar, Luana!”

Voltei calada, com as mãos suando e as pernas bambas; machucada, envergonhada, desamparada. Trinta e um anos se passaram, mas sempre que conto essa história, a minha voz silencia, as lágrimas tomam os meus olhos, assim como tomaram os seus durante a entrevista. As lágrimas sinalizam o nosso coração, a nossa alma profundamente ferida pelo racismo. Desconfio que isso não passa. Fica. Em mim não passou.

A tristeza e o sofrimento não são as únicas lembranças daquela manhã de 1993. Estávamos na aula de Matemática, aprendendo a fazer as primeiras contas de multiplicação. Embora minha professora nunca tivesse notado, eu tinha muita facilidade de aprender, tanto que ensinava outros alunos. Ficava feliz, orgulhosa… Contudo, naquele dia, o racismo roubou a minha capacidade, o meu prazer de fazer cálculos. Perdi completamente a vontade de aprender. Ainda hoje, fazer contas simples é algo extremamente difícil para mim.

Além de me solidarizar, de me indignar, de tentar abraçá-lo com as minhas palavras, o fato de você ter verbalizado durante a entrevista o que o racismo tem lhe roubado, tomado de maneira atroz, me faz escrever essa carta. Fiquei angustiada quando você disse que, em razão do “apedrejamento moral” nos estádios da Espanha, você tem cada vez menos vontade de jogar futebol.

Entendo perfeitamente o seu sentimento. O racismo destrói nossa saúde mental, dilacera nossa autoestima, por vezes nos faz esquecer quem realmente somos. A ideia de que devemos ser fortes o tempo inteiro é injusta, cruel, nos desumaniza. Como você mesmo disse, nós, negros e negras, temos direito a uma vida normal, de felicidade. Não é justo que nossa existência seja atravessada, marcada de forma tão brutal pela violência odiosa do racismo. Porém, não posso deixar de lhe dizer que, se parasse de jogar, o mundo perderia uma joia rara, um talento que não surge todos os dias no futebol.

No caso do Brasil, a perda seria nos mais diversos sentidos. Como se não bastasse a ausência de craques, há muito carecemos de jogadores que emprestam seus rostos, suas vozes em prol da justiça, da igualdade e do exercício da cidadania. A exemplo do Reinaldo, atacante do meu glorioso Clube Atlético Mineiro, que lutou bravamente contra a ditadura. A exemplo de Sócrates e Casagrande, ídolos do Corinthians e porta-vozes da democracia. A exemplo de Paulo César Caju, que dentro e fora de campo lutou contra o racismo. A exemplo de Toninho Cerezo, que ao escrever uma carta carinhosa e acolhedora para Léa, sua filha transexual, contribuiu e ainda contribui para a construção de uma sociedade em que o direito de ser e existir seja uma máxima. A exemplo de você, que com apenas 23 anos, além de craque, já é embaixador da UNESCO e vem exercendo um belo e importante trabalho em favor do direito à educação de qualidade, contra o racismo. Muhammad Ali deve estar muito orgulhoso de você.

Vini, sei que seus dias não têm sido fáceis. Sei que ao vencer os desafios impostos pela cor da pele, pela pobreza, pela infância e adolescência na favela, e tornando-se atleta de um dos maiores times do mundo, não era esse fardo tão pesado que você imaginava carregar.  Mas, ainda assim, peço que não desista. Digo isso sabendo que a dor, a ferida, são grandes demais.

Gostaria muito que continuasse: por você, por sua família, pelas crianças negras que o tem como espelho, por todos nós que o admiramos.

Gostaria que você ficasse para que pudéssemos seguir lutando, sonhando com o dia em que o racismo não roubará mais nada de ninguém.

Com o carinho e a admiração de sempre.

Luana Tolentino

 

*Mestra em Educação pela UFOP, atualmente tem se dedicado à Formação Inicial e Continuada de Professores. É autora dos livros ‘Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula’ (Mazza Edições) e ‘Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil’ (Papirus 7 Mares).

 

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