Já são quase sete anos revelando sua história publicamente, mas a psicoterapeuta Bibiana Reibaldi, 68 anos, não poupa as lágrimas ao lembrar que seu pai foi um dos responsáveis pela tortura e assassinato de mais de 30 mil argentinos durante a ditadura militar no país vizinho. Em um misto de tristeza, indignação e coragem, Bibiana fez um desabafo em uma entrevista exclusiva à coluna. Conta que cobrou responsabilidade do pai, o oficial de informações Julio Reibaldi até o último de seus dias. Nunca foi ouvida.
“Ele nunca falou (sobre os crimes). Até o dia da sua morte, eu insisti para que ele falasse”, conta ela. “Mesmo assim, ele morreu totalmente consciente de que deixava sua filha com um legado de dor até o fim de seus dias porque ele conhecia meu sentimento, e eu deixei muito claro em todos os enfrentamentos que tivemos nesses dez anos antes de sua morte”, revela ela. “Ele priorizou seu pacto de silêncio com os genocidas”, desabafa.
A psicopedagoga está no Rio de Janeiro a convite do Grupo Tortura Nunca Mais para receber a Medalha Chico Mendes em nome do coletivo Histórias Desobedientes, composto por filhos e familiares de genocidas críticos da última ditadura cívico-militar da Argentina (1976–1983). A cerimônia ocorre nesta segunda-feira (1) no auditório da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Bibiana afirma que nunca quis se sentir cúmplice dos crimes cometidos por seu pai. “Nós, filhos dos genocidas, decidimos, desde um ponto de vista ético, depreciar e repudiar as ações de nossos familiares”, explica. “É uma posição tomada pela ética. É uma decisão de vida”, defende ela, com lágrimas nos olhos. A psicopedagoga explica o uso do termo. Esse grupo de familiares de torturadores do período reconhece que seus parentes cometeram crimes considerados contra a humanidade. Na Argentina, 1.184 pessoas já foram condenadas por crimes durante a ditadura.
Pai de Bibiana, Julio Juan Felipe Reibaldi, oficial de informações do exército argentino, foi integrante do batalhão 601, central da 8ª inteligência Viamonte y Callao. O oficial também foi treinado, em 1963, pela Escola das Américas, no Panamá. Entre 1965 e 1968, recebeu militares franceses que vieram “treinar” membros das forças armadas argentinas.
“Esses dados, eu fui conhecendo há pouco tempo. Quando ele viajou ao Panamá e aos EUA, eu soube dessa viagem, mas era pequena, uma menina, tinha sete anos e lembro dos meses que meu pai esteve fora de casa e depois quando voltou com presentes. Só adulta é que eu me soube sobre onde ele esteve”, explica. “Juntar esse pai por quem eu tinha carinho com um criminoso de lesa-humanidade era impossível naqueles anos”, recorda ela, sobre a infância.
Bibiana disse que quando as investigações do estado começaram na Argentina passou a tomar conhecimento de tudo e até pesquisou nos documentos públicos de seu país sobre a atuação de seu pai. Com tristeza, contou que viu a documentação sobre as viagens em que seu pai foi enviado “para ensinar os oficiais mais jovens das forças de outros países como fazer para sequestrar, torturar e desaparecer pessoas“.
Segundo ela, há informações de que seu pai esteve no Peru, Bolívia e também no Brasil várias vezes entre 1978 e 1980. Desse época, recorda-se que ele contava coisas “simpáticas” sobre a cultura brasileira e as tradições de jogar rosas brancas ao mar, provavelmente no réveillon. “Mas ele não ia de férias, para visitar, ou de passeio a esses lugares. Ele ia para identificar pessoas para depois sequestrá-las, torturá-las e matá-las”, conta.
Bibiana explica que ele chegou a se aposentar em 1970, época em que se separou de sua mãe. Depois, reingressou como agente civil na mesma central, de 1971 a 1987. Ela revela que, por anos, tentou fazer com que o pai prestasse depoimentos perante às autoridades na Argentina. No entanto, ele nunca quis colaborar com as investigações. Ele morreu, em 2002, sem ser julgado.
O Histórias Desobedientes foi formado em 2017. Bibiana conta que há muito tempo procurava ajuda para lidar com a questão de ser filha de um genocida, mas até aquele momento, só conhecia os que apoiavam ou preferiam o silêncio. Perdeu muitos amigos pelos questionamentos que fazia.
O encontro dos filhos críticos às ações de pais torturadores passou a acontecer por meio das redes sociais quando a sociedade argentina se mobilizou contra uma decisão judicial que abria a possibilidade de libertação para alguns torturadores em 2017. “No início, o grupo era formado por seis mulheres e um homem. Hoje somos cerca de 150”, conta. Eles se reúnem semanalmente para apoiar-se e discutir ações de apoio à memória e verdade.
Depois, a iniciativa se expandiu para Chile, Uruguai, Paraguai, El Salvador, Espanha e, recentemente, há contatos com netos de genocidas alemães. A ditadura civil-militar da Argentina iniciou-se em 1976 e durou até 1983. Durante esse período, cerca de 30 mil argentinos foram vítimas de desaparecimento forçado.
Bibiana diz que o grupo tenta fazer uma ação de reparação. “Para essas pessoas que tenham sido vítimas das ações do meu pai ou de outros, minha presença no Brasil dando testemunho de que repudiamos as ações dos nossos próprios familiares é uma maneira de reparar não somente nossas vidas, cheias de vergonha pelo que nos tocou e pela dor, porque nos identificamos com as vítimas na dor. Não somos vítimas, mas nos identificamos na dor”, afirma.
Além do coletivo argentino, os homenageados deste ano serão Boycott, Divestment, Sanctions & Stop the Wall; Gonzaguinha (in memoriam); Leonel Moura Brizola (in memoriam); Maria Criseide da Silva e Wellington Marcelino Romana; Norberto Nehring (in memoriam); Pastor Mozart Noronha; Quilombolas do Sapê do Norte (ES); e Ranúsia Alves Rodrigues (in memoriam).
Há quase 40 anos, o Grupo Tortura Nunca Mais, em parceria com outros movimentos e entidades nacionais, vinculados à luta em defesa dos direitos humanos — homenageia, anualmente, pessoas ou movimentos sociais, contemplando-os com a Medalha Chico Mendes de Resistência. Este evento ocorre todos os anos, no dia 1º de abril, data que marca o golpe empresarial-militar brasileiro de 1964.
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