ICL Notícias
Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Colunistas ICL

Irenice, a atleta brasileira que a ditadura apagou

Irenice Maria Rodrigues foi expulsa da delegação de 1968
05/04/2024 | 08h25

No final dos anos 1960 despontava para o estrelato uma atleta que o país foi induzido a esquecer. A mineira de Itabirito Irenice Maria Rodrigues, uma jovem negra e corredora fundista, incomodou ao máximo todo o alto comando do esporte da época, composto majoritariamente por militares adeptos do golpe e parte importante da máquina de divulgação da ditadura.

Desde que naquele 24 de junho de 1894, o aristocrata francês Barão Pierre de Coubertain apresentou a ideia de realizar um evento esportivo inspirado nos Jogos da Grécia antiga, edição após edição, a competição passou a servir para mostrar bem mais que excelência nos campos, piscinas e quadras, mas  também como propaganda de regimes políticos. O Brasil não escapou a esta lógica, principalmente durante o período iniciado com o golpe que completou seis décadas no final do último mês de março.

Irenice começou a incomodar profundamente quando decidiu correr a prova de 800 m rasos, proibida para as mulheres por mais de 30 anos sob o argumento de que o corpo feminino não aguentava tamanho esforço. Desafiando os tabus da época, ela não só disputou como ganhou muitas medalhas. Feitos que fizeram da moça negra moradora do bairro carioca de São Cristóvão, que chocou ao pintar os cabelos de louro como só seria moda no século seguinte por meninos que poderiam ser seus netos, alguém consciente o suficiente para acusar o clube por onde competia na época, o Fluminense, de racista depois que ela e outros atletas foram barrados por tentarem participar de uma tarde dançante. De qual família você é empregada?”, perguntaram.

Considerando que este foi o período em que se buscou com afinco o reforço da imagem de “democracia racial”, denúncias de racismo poderiam ser consideradas discursos subversivos e o barulho foi tanto, que Irenice foi impedida de competir com a camisa do clube. Nada a imobilizou, pois competiu com uma camisa branca e não apenas isso, liderou uma greve interestadual de atletas, denunciando as péssimas condições de trabalho nos clubes.

Uma pedra no coturno do Comitê Olímpico Brasileiro da ditadura e um talento excepcional, Irenice foi batendo seus recordes, ganhando suas medalhas, abrindo as fronteiras quando, finalmente, o ano de 1968 chegou com o mundo pegando fogo. Foi o tempo das lutas pelos direitos civis, dos Panteras Negras, do feminismo, dos protestos contra a guerra do Vietnã. Martin Luther King perderia a vida em abril, Malcom X estava morto há apenas dois anos. No Brasil, a época mais cruel da ditadura que prendia, torturava e matava. Tempos de fogo e Irenice era pólvora. Foram muitos os embates. O COB não a queria. O status quo não a queria.

Apesar de toda a sua feroz crítica e todo o incômodo que ela não se incomodava em causar, seu talento era incontornável e lá estava ela, na delegação brasileira nos Jogos do México e com chance real de trazer uma inédita medalha para o país. Não conseguiu pisar na pista de competições, pois em uma briga com outras atletas, foi acusada de burlar a segurança para treinar fora do horário. Uma gota d’água.

Enquanto os norte americanos Tommie Smith e John Carlos erguiam o punho cerrado no pódio dos  200 m rasos e baixavam os olhos para não encarar a bandeira estadunidense, Irenice voltava sozinha ao Brasil, expulsa da delegação. Continuou a competir, mas sua carreira só seria interrompida definitivamente em 1971 quando, insatisfeita e infeliz com todo o sistema, na hora da largada seu protesto foi caminhar ao invés de correr.

A partir deste ponto a atleta foi perseguida implacavelmente e jamais conseguiu voltar aos Jogos. Não davam seus resultados, ocultaram suas fotos, informações e participações.  Não conseguiu cursar Educação Física. Irenice teve a vida dificultada em cada tentativa de se erguer.  Faleceu em 1981 em um suspeito acidente e foi sepultada em um túmulo sem nome. Aconteceu com ela o mesmo que ocorreu com quase toda a história da população negra brasileira: apagamento sistemático e planejado.

No entanto, uma página da história não se rasga tão facilmente. Há poucos anos as pesquisadoras do esporte Kátia Rúbio (USP) e Cláudia Farias (Unesa) resgataram a trajetória de Irenice. Ela também foi tema do documentário “Procura-se Irenice”, de 2016, realizado por: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça, com produção de laura Calasans. A cidade de Itabirito passou a organizar uma maratona que leva o seu nome e, depois que escrevi sobre ela há três anos em outro veículo, ganhei em 2021 uma medalha comemorativa deste evento criado em 2019 e que simboliza a vontade de premiar uma atleta silenciada por buscar igualdade e brigar contra a arbitrariedade.

Em poucos meses o Brasil estará vibrando com um dos eventos mais fascinantes de todos os tempos, que este ano ainda acontece numa cidade que está no imaginário planetário como puro glamour, Paris.  Os olhos do mundo se voltarão para recordes, medalhas, feitos e curiosidades. Que tenhamos olhos para ver as questões políticas que assolam o planeta e que estarão todas lá. Sempre estarão.

Passemos à história sem apagar mais ninguém.

Deixe um comentário

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail