Na vida escolar, nem tudo foi lindo, muito menos fácil. Enquanto uns abriram portas, outros puxaram tapetes. Não deveria ser assim, mas é a vida real.
Quando a escola abdica do seu papel de humanizar para conviver, em detrimento do adestrar para se destacar, para as crianças no espectro, por mais cara que seja a escola, não serve. Daí, na experiência dos pais, ser tão difícil encontrar uma escola que vá além das leis do mercado. Até porque, os alunos não são mercadorias e as famílias não são meros clientes.
No contexto da escola pública e gratuita, é oportuno lembrar, os alunos com autismo não estão nesses espaços na condição de cotistas. Jamais confundir políticas públicas, em que os cidadãos são os beneficiários, com generosidades de agentes públicos que geram supostos favores.
De fato, em alguns contextos, a precarização das estruturas do ensino público torna o trabalho dos educadores numa tarefa árdua. Contudo, tratando-se do Transtorno do Espectro Autista (TEA), não tenho dados concretos que me permitem afirmar que a qualidade da escola privada é melhor do que a escola pública.
A propósito, adoraria conhecer pesquisas acadêmicas que contornam essas questões comparativamente. Importante trazer para esse debate as desigualdades de classe, gênero e raça e não tratar o TEA como fenômeno alienígena.
Quando resolvemos mudar o Luca de escola, nos primeiros contatos em que eu e Patrícia íamos explorar o espaço e conversar sobre a proposta pedagógica, sempre havia vaga.
Daí, interessados em algumas propostas, voltávamos outro dia para o segundo encontro com a possibilidade de encaminhar a matrícula. Só aí dizíamos que o nosso filho estava no Transtorno do Espectro Autista (TEA).
A partir de então, tudo mudava. A tal da vivência da criança na escola com propósito de interação se transformava em avaliação. Diversas formas e linguagens para dizer que o candidato não estava no padrão. Bem, isso já sabíamos.
Sutilmente ou de forma abrupta, a pessoa gentil e atenta destacada para atrair novos alunos se transformava numa pessoa tensa, temorosa quanto à possibilidade de insistirmos com o propósito de matricular o filho.
Nesses casos, o expurgo é comum sob as alegações mais cretinas que se possa imaginar. Por respeito ao Luca, preferíamos não entrar com recursos jurídicos. O tipo de lugar que dolorosamente já conhecíamos e não queríamos voltar.
Nessa trilha, talvez seja divertido cometer novos erros. O horrível seria empacar e insistir nos mesmos erros.
A família que convive com o TEA faz muita força para conquistar os espaços e garantir os direitos. Quando os meninos e meninas com autismo chegam, ainda que esgotados e com marcas, chegam bem mais fortes.
Não era para ser assim tão sofrido e tão difícil, mas não dá para ficar pedindo favores ou gerar o sentimento de baixa autoestima com pena de si mesmo. Caiu? Levanta-se e anda!
Quando chegamos à Escola Oga Mitá, estávamos feridos, inseguros e constrangidos. Tínhamos tantas experiências com portas fechadas que chegamos a cogitar que matricular o nosso filho na escola era um ato subversivo.
O Luca entrou nessa escola aos 6 anos, no Ensino Fundamental I, e saiu formado no Ensino Médio, aos 19 anos. Não era uma Escola especialista em neurodiversidades ou neurodivergências, muito menos modelo de inclusão ou detentora de patentes e rótulos de vanguarda.
Contudo, na nossa experiência, foi uma comunidade sensível e acolhedora. Parceria estabelecida desde a primeira hora. Posicionamento político-pedagógico que prima pelo resgate à nossa história, à nossa cultura e pelo respeito às diferenças étnicas, de gênero, de valores e socioculturais.
Luca leu um lindo discurso de formatura e nos olhos dos colegas, professores, direção e funcionários cheguei à conclusão de que havia orgulho e afeto coletivos. No telão, os traços inconfundíveis do Luca que todos os dias desenhava no quadro recepcionando aos professores e aos colegas.
Aquilo que víamos ali era fruto de uma parceria bem-sucedida, mas sobretudo, mérito dele. Ele chegou com muito esforço. Ele conquistou saberes e, de forma leve, reverteu as desconfianças. Havia naquela solenidade de formatura a tal da ginga da diversidade. O patamar mais alto na hierarquia dos valores dessa comunidade escolar é o acolhimento.
No primeiro ano o Luca encontrou a Mônica. Professora Paulo Freiriana, na veia. Na experiência com o Luca, a Mônica foi ampliando os seus fazeres e afetos na comunidade escolar.
Neste ambiente, ela foi a amiga facilitadora de todos os anos em todas as fases. Viu o menino e o acompanhou como mediadora até o último ano do Ensino Médio.
Luca visitava a sua sala todos os dias enquanto esteve na escola, seja para estudar ou simplesmente para beijar a sua mão e levantá-la num abraço desengonçado. Na formatura, nada mais justo do que receber o diploma das mãos dela.
A Izabella foi outra professora fundamental. A turma do Luca foi a última em que ela lecionou antes da aposentadoria. Ele estava com 10 anos. Depois que ela se aposentou da Ogá Mitá, continuou como professora particular dele até a entrada na faculdade.
Foram anos de parceria e cumplicidade entre aulas presenciais na nossa casa e aulas online durante a pandemia. Foi nossa cúmplice durante todo período da escola e ainda o preparou para o vestibular. Nela está reunida o que entendemos ser uma pedagoga. Aquela que pega pela mão e conduz. Izabella não separa saber de ser.
Nessa trindade escolar, não poderíamos omitir a Claudia. Psicopedagoga que muito nos ajudou a perceber as potencialidades do Luca. Uma mestra em despertar interesses que vão além dos protocolos formais das escolas.
Quando chegou para os encontros com ela, o Luca já era um leitor voraz. Ela pegou esse veio e fez a festa. Quem organiza interesses alheios, não pode ser uma pessoa modesta. Claudia é dessas que sabe bagunçar para que seus parceiros de aventuras se percam no lúdico antes de se encontrarem na vida.
Evidente que estou ocultando muitos nomes neste breve relato. Cito essa trindade como marco representativo. A despeito das estruturas, gente faz toda diferença. Luca aprendeu a olhar nos olhos porque gente empática quis olhar para ele de perto.
Estou ciente que há diversos níveis de potenciais e comprometimentos das pessoas com autismo. Por óbvio, minha intenção não é sugerir com a minha experiência um caminho comum.
Que nas singularidades que nos separam localizemos o fator que nos equipara e que por isso se torna inquebrantável e inegociável: a dignidade dos nossos filhos na condição de alguém que tem o autismo, mas não se resume a essa condição.
Portanto, níveis de escolarização não demarcam a qualidade deles. Os marcos escolares não são suficientes para aferirem o valor da dignidade dela ou dele.
Nenhuma criança ou jovem no espectro se constitui como padrão para qualquer outra dentro da condição do autismo. Caso contrário, experiências circunstancialmente exitosas, ainda que testemunhadas com o propósito de inspirar, podem gerar comparações que levam a frustrações e mais sofrimentos ao constatar que o filho ou a filha não desfruta de tais conquistas.
O riso nosso de cada dia dá-nos hoje!
Deixe um comentário