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Vilipêndio de um moribundo e a mercantilização da vida

No episódio do homem que foi levado morto ao banco, chamaram a atenção a naturalização da dor e do sofrimento humano
20/04/2024 | 07h33

Por Joana de Vilhena Novaes*

Na última quarta-feira repercutiu a notícia de uma cena dantesca ocorrida em um bairro da zona oeste carioca. Farsa espetacularizada, assombro banalizado, tudo devidamente filmado e registrado, como convém em uma sociedade em rede.

Tratava, pois, do cadáver de um homem de 68 anos, que havia sido levado por uma mulher (Erika de Souza Vieira Nunes — sua sobrinha e cuidadora) com o objetivo de realizar, em seu nome, um empréstimo no valor de dezessete mil reais.

Não nos deteremos aqui nas inúmeras especulações que uma investigação criminal desta natureza pode gerar. Nosso objetivo é refletir sobre a cena e os sujeitos que dela participavam. Mais especificamente, alguns aspectos dos modos de subjetivação atual que parecem ter contribuído para que o estranhamento, a desconfiança e o mal-estar não fossem evocados diante do ocorrido.

Em outras palavras, como o cenário daquela agência bancária refletiu, de modo paradigmático, certos valores e costumes da nossa cultura. Observarmos, assim, o já consagrado efeito da banalidade do mal antecipado com aguda clareza, por Hanna Arendt, em um outro contexto histórico.

Neste sentido, ainda que uma parcela da população tenha expressado aterramento diante do ocorrido, os aspectos, contudo, que mais chamaram a atenção foram a naturalização da dor e do sofrimento humano, expressos através da coisificação do sujeito, com fins utilitaristas.

Frases como “ele é assim mesmo”, proferidas pela acompanhante, na tentativa de conseguir a assinatura do idoso morto, sem que houvesse uma grande comoção por parte dos sujeitos que participavam da cena, apontam para um certo grau de dissociação e negação em relação à gravidade da situação. Deixam revelar, igualmente, o pouco valor atribuído à vida humana.

Trata-se do tabu em relação à morte e, como um segundo corolário, um tipo de organização social que associa juventude à boa performance, sucesso e positividade. Da mesma forma, à velhice atribui-se refugo humano, um contingente negligenciável ligado às representações sociais de doença, lentidão e improdutividade.

Um olhar atento para a cultura do consumo, da obsolescência programada e da impermanência, parece nos mostrar não haver espaço para o aprendizado da tradição contida na figura do velho. Ao final, resta-nos a indagação: quando a palavra de ordem é o bem-estar e vigoram as relações mercadológicas entre sujeitos empreendedores de si, quanto valeria um corpo perecível ou perto do fim?

A resposta parece ser um desvalor. Negamos a morte como parte integrante da vida. Eliminamos pouco a pouco os rituais coletivos que ajudam a representá-la, assim como o luto é também privatizado.

A quantidade de memes e piadas satirizando o episódio, mas, sobretudo, a rapidez com a qual os mesmos foram produzidos, merecem destaque.

Tal fato, talvez seja a melhor ilustração da aversão à negatividade enquanto um sintoma social dos nossos tempos. A incapacidade, cada vez mais flagrante, de deixar-se afetar ou solidarizar com o sofrimento alheio.

Qual a razão para o humor ter suprimido o assombro e o estranhamento? Não podemos negar, igualmente, como o humor nos defende de entrar em contato com o horror.

Sobre isso reflete Walter Bejamin, ao denunciar que a vida nas cidades nos despe da memória das experiências passadas, forçando-nos a estar atentos aos perigos imediatos e, sob o preço de uma irreflexividade, cria modos de defesa capazes de proteger-nos dos múltiplos choques.

Anedonia, desafetação, esgarçamento do laço social, quaisquer que sejam os termos, vale sempre lembrar que, na ode a um mundo de espelhos, tudo que resta é solidão!

Se por um lado, o humor é utilizado como um dispositivo defensivo, por outro, chama atenção a reação do mercado, explicitada na reação do banco preocupado com a associação do seu nome ao fenômeno da fraude e da infâmia.

Ainda que digno de investigação: vivo ou morto, velho ou jovem, às margens ou dentro da norma, pranteado ou feito de escárnio — por que pensar o corpo?

Porque, assim como Foucault, acreditamos que toda genealogia do poder passa pelo corpo.

Toda a história humana, toda a sociedade, toda a singularidade existencial é experimentada e vivida nos corpos reais dos que vivem ou viveram. Se quisermos então saber do mundo humano, da sociedade, de nós mesmos, devemos olhar para os corpos vividos, pois é no corpo que se inscreve a história humana e a história de um único indivíduo, como nos lembra Lévi Strauss.

Norbert Elias, em dois ensaios, respectivamente, “A solidão dos moribundos” e” Envelhecer e morrer”, aborda o processo civilizatório da sociedade e dos indivíduos e os modos por meio dos quais se instalam, em cada um de nós, os sentimentos de constrangimento, medo e embaraço em relação a tudo que lembre a finitude da vida biológica.

O sociólogo nos leva a refletir sobre os inúmeros terrores que envolvem o fato de envelhecer e morrer ressalvando, no entanto, que o constrangimento social e a áurea de desconforto que, frequentemente, cerca a esfera da morte em nossos dias é de pouca serventia para uma mudança de valores e atitudes frente à questão.

O afastamento dos velhos e moribundos do convívio social é o sinal mais evidente da não identificação entre os jovens e os que estão envelhecendo e morrendo.

Mas por que falar disso tudo?

Nenhuma realidade humana prescinde de dimensão social. A singularidade da dor (física ou psíquica), enquanto experiência subjetiva, torna-a um campo privilegiado para pensarmos a relação entre o indivíduo e a sociedade. Toda experiência individual inscreve-se num campo de significações coletivamente elaborado.

Quem hoje recusa a “fatalidade” da lógica econômica é tachado de sonhador, quando não de “neobobo”, na feliz expressão de Moacir Werneck de Castro para designar os “não-alinhados” à ideologia da globalização liberal.

Entretanto, frisamos o quanto é simplório pensar que um sistema que produz tantos excluídos irá eternizar-se. Acreditamos que, cabe aos homens e mulheres do século 21, e também à Universidade, tecer novas tramas para um futuro mais justo e inclusivo onde não haja lugar para que apenas os “economicamente arianos” sobrevivam.

 

* Psicanalista, Pós-Doutora em Psicologia Médica e Social/UERJ, Profa. do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade — UVA, Coordenadora do Laboratório de Práticas Sociais Intregaradas LAPSI/UVA, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social LIPIS/PUC-Rio, Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine – Université Denis-Diderot Paris 7 CRPM-Pandora.

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