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Vivian Mesquita

Apresentadora, Repórter e Editora Chefe Executiva com passagens pela Editora Abril, Rede Globo e Canais ESPN Disney. Especialista em esportes de ação em mercado mundial. Profissional com formação consolidada na área de mídia e conteúdo esportivo, com mais de 20 anos de experiência em TV. Relacionamento sólido com a comunidade criativa local, produtoras, talentos, atletas, marcas e mídia. Habilidades em gestão de equipes, processos organizacionais e comunicação. Apresentadora do ICL Notícias - 1ª Edição.

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A história que a água não levou

Não deveríamos deixar nossas histórias flutuarem pra longe da memória
26/04/2024 | 06h50

A coluna de hoje vai falar de amor. Amor e romance, no cenário caótico de uma enchente no ano de 1971. É uma história real. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações não terá sido mera coincidência.

Eles se casaram em novembro de 1970, ela com 19, ele com 20 anos. Um jovem casal começando a vida em Cubatão, na Baixada Santista. Poucos meses depois, no comecinho de 1971, a cidade sofreu uma das maiores enchentes daquela década. Córregos e riachos transbordaram, carros boiavam pelas ruas e avenidas, os muros das casas dobravam feito papel com a violência das águas. Os jornais da época relatam que dezenas de moradores morreram afogados e outros tantos perderam tudo o que tinham.

A moça trabalhava numa fábrica de costura na cidade vizinha, Santos. Naquele dia foi dispensada mais cedo. Ouviu um “burburinho” que dizia: Cubatão estava alagada! Rapidamente tomou o ônibus de volta pra casa, e ali começava a sua saga.

O coletivo parou no meio do caminho, no bairro do Casqueiro, a pouco mais de seis quilômetros do centro de Cubatão. A água já invadia o segundo degrau do circular, não dava para continuar. O restante do caminho ela teria que percorrer a pé embaixo de chuva.

Com a ajuda de moradores, passou pela cerca que separava a estrada de ferro e seguiu em direção ao trilho do trem — ponto mais alto, e único caminho “viável” para seguir a jornada de volta pra casa.

Em Cubatão, um moço assustado chegava à casa da sogra vestindo um shorts minúsculo, típico daquela época. Ele carregando no ombro o terno do casamento.

Ali, em cima de uma máquina de costura encontrou duas crianças, uma de 9 e outra de 12 anos. Eram seu cunhado e cunhada se protegendo da invasão da água. Obstinado avisou, “vou a Santos resgatar a irmã de vocês”.

Caminhando pelo trilho do trem a moça dividia com as baratas a única opção mais ou menos seca. Elas também queriam fugir da enchente. Sem celular ou internet a catástrofe era descoberta por ela em tempo real.

Quando finalmente chegou, a cidade estava, nas palavras dela “um rio só, imenso, o que que eu faço agora”? Na estação do trem, ponto final, ela desceu do trilho. A água foi até a cintura. A moça não sabia nadar!

O marido, por outro lado, era campeão de natação, tinha várias medalhas, treinava em mares e rios da região. A casa deles ficava na parte baixa, ele sabia que se ela tentasse chegar até ali, certamente morreria afogada.

Tio Chico, por acaso ou providencia do destino, encontrou a sobrinha recém casada caminhando pela água na avenida principal e avisou: o rio encheu, não tem mais rua, vá para um lugar alto!

No sentido contrário, o homem nadava por aquilo que antes era uma estrada tentando refazer o caminho da amada. Foram 6,4 quilômetros de braçadas ritmadas interrompidas vez ou outra por tudo aquilo que a água destruía pela frente.

Os 12 quilômetros finais até Santos, já distante do centro da enchente, ele fez andando ou correndo. Na rua Brás Cubas, sede da confecção onde ela trabalhava, percebeu que chegou tarde demais.

A missão de resgate do marido foi descoberta por ela já na casa de uma vizinha de sua sogra — o ponto mais alto da cidade que conseguiu chegar caminhando pela água, naquele momento, na altura do peito. Do outro lado, ele fazia o caminho de volta, andando, correndo e nadando.

O casal finalmente se encontrou na rua atrás da igreja matriz. Ele contou que tentou salvar tudo o que podia da casa recém-montada. A cama e o colchão, colocou em cima de quatro cadeiras. O guarda-roupa foi pra cima da cama. A enceradeira, presente de casamento que ela mais usava, foi deixada em cima do fogão.

No dia seguinte descobriram que uma cadeira havia sucumbido, o guarda-roupa e o colchão foram pra água. A cestinha de ovos que enfeitava a mesa da cozinha estava boiando na sala, e a lama foi implacável.

Juntos, nas semanas seguintes, eles limparam, desmontaram e secaram os móveis com uma engenhoca de lâmpadas e ventiladores inventada por ele. O fogão foi aberto na lateral e colocado para secar.

Trabalharam em equipe, restauraram e recuperaram tudo aquilo que ainda estavam pagando em prestações. Praticamente nada foi perdido, nem a enceradeira! E dali eles recomeçaram a vida!

Ela nunca aprendeu a nadar, já ele, foi quem me ensinou a paixão pelo mar e pela natação. A moça era Maria de Lourdes, minha mãe, e o rapaz, Elias, meu pai. Meu irmão nasceu dois anos e meio depois da enchente, eu cheguei 5 anos mais tarde, e minha irmã, sete.

Durante toda a nossa infância convivemos com as marcas que a água deixou nos móveis dos nossos pais. Lembro de me esconder naquele armário de roupas e não entender por que o fundo dele era “meio solto”. Pela fresta, meus irmãos me pegavam, fim do esconde-esconde.

Eu sabia da enchente, mas da tentativa de resgate daquele jovem de 20 anos, e da coragem da moça ao enfrentar águas sem saber nadar, eu só soube hoje. E foi graças ao meu sobrinho de 10 anos, o Murilo.

Ele descobriu recentemente o recurso da criação de grupos no WhatsApp. Reuniu o tio, a tia, os primos, a avó e duas tias-avós em um grupo bastante peculiar. Vai dos oito aos setenta e três anos. Hoje, por acaso, Tia Ângela, aquela menina de 12 anos que, com o irmão caçula, ficou em cima da máquina de costura para se salvar da água, aleatoriamente lembrou da enchente.

Imediatamente eu corri para saber todos os detalhes com a minha mãe. Meu pai, infelizmente, partiu em 2012. Eu perdi a oportunidade de ouvir dele os detalhes da missão resgate.

Decidi compartilhar aqui essa história como um lembrete. Não deveríamos deixar nossas histórias flutuarem pra longe da memória. Quanto mais a gente sabe quem é, mais a gente vai pro mundo sem perder o chão. “E ao pintar a sua aldeia, você se torna universal”.

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