O capital não é um montante de dinheiro ou patrimônio. O capital é um processo. Trata-se de um mecanismo histórico e social que, ao longo dos últimos cinco séculos, vem expropriando as classes trabalhadoras do mundo e criando uma massa de esfarrapados que possuem na sua força de trabalho o único produto a ser vendido para fazer a manutenção da sua subsistência.
Nesse contexto, os próprios seres humanos são reduzidos a mercadorias. E algumas valem mais do que outras. Evidentemente, cada conflito traz as suas idiossincrasias. Contudo, seria difícil encontrar, em todo o planeta, uma disputa armada que não envolva aspectos econômicos e territoriais como pontos nevrálgicos da contenda, ainda que muitas vezes misturados com boas doses de fundamentalismo religioso e outras questões ideológicas.
Esse processo é estruturado por uma força social que organiza os arranjos da sociedade internacional com base em categorias de distinção, de forma a criar uma gramática da desigualdade e, em última instância, uma espécie de hierarquia moral que rege o funcionamento político, econômico e social do planeta.
Ou seja, a despeito do que se ensina nos cursos de Relações Internacionais ocidentais, o concerto das nações não se rege com base no Direito Internacional ou na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, fundamentalmente, ao redor dos interesses consagrados pelo capitalismo anglo-saxão e o grupo conhecido como “The West”.
Essa é a força que cria a hierarquia moral à qual me refiro, o que faz com que alguns grupos ou nações sejam rotulados como “terroristas” ou “genocidas” ao cometerem atrocidades, como as perpetradas pelo Hamas contra o povo israelense, enquanto outros sejam considerados “defensores do mundo livre” ou travando batalhas em nome da “democracia”, ainda que conduzam crimes da mesma ordem.
Por exemplo: segundo o estudo Cost of War (Custo da Guerra), da Brown University, os Estados Unidos mataram, direta ou indiretamente, algo entre 4.5 e 4.7 milhões de civis, em diferentes partes do mundo, e deixaram outros 38 milhões de refugiados desde os ataques do 11 de setembro.
Outro exemplo: na divulgação dos telegramas via Wikileaks, existem ataques a casamentos e funerais na fronteira do Paquistão e do Afeganistão. Esses materiais revelam os procedimentos de seleção de alvos dos Estados Unidos e a metodologia utilizada para eliminar esses alvos.
Em entrevista, John Shipton, pai de Julian Assange, afirmou que “(…) o ponto alto da vida dessas comunidades é o casamento entre um jovem casal. Todos os recursos daquela comunidade e das famílias são reunidos para sustentar os recém-casados, porque aí está o futuro dessas pessoas. O entendimento disso, por antropólogos e oficiais especialistas em alvos nos EUA, é que para atacar essas comunidades você destrói o ponto mais importante de suas vidas: os casamentos, o início de uma nova vida, e os funerais, quando eles honram os seus mortos. Portanto, os ataques a casamentos e funerais (pelas forças militares dos EUA) não eram acidentais. Com a liberação dos telegramas, esses ‘acidentes’ pararam de acontecer”.
Podemos classificar atos assim como “terroristas”? Por que os Estados Unidos jamais são taxados como “terroristas” na mídia ocidental apesar de tanta barbaridade? Por que, por exemplo, o genocídio belga, que foi conduzido por Leopoldo II e matou algo entre 15 e 20 milhões de congoleses não conta como “holocausto”?
Essas perguntas retóricas servem apenas para reforçar o argumento contido neste texto: existe uma hierarquia moral que organiza os arranjos sociais na sociedade internacional e o léxico específico subsequente. Tal hierarquia coloca brancos acima de negros, os homens acima das mulheres, os héteros acima dos gays, os europeus e estadunidenses acima dos africanos e latinos (veja o mapa mundi), os israelenses acima dos palestinos e assim sucessivamente.
Enquanto esse modelo de sociabilidade vigorar, o mundo seguirá sendo governado pelos grandes conglomerados empresariais e militares das potências hegemônicas e o Conselho de Segurança estará sempre acima da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Simplesmente, porque, nesse caso, as nações não estão unidas e a “segurança” dos que ocupam as primeiras posições da pirâmide societária organizada por essa hierarquia moral deve ser garantida com base no uso da força irrestrita.
Enquanto esse modelo existir, haverá guerra. É o que estamos vendo em múltiplas partes do mundo nesse momento e, infelizmente, outros atos de violência deverão ser catalisados em diferentes partes, das favelas brasileiras ao Oriente Médio.
As contradições dessa forma de sociabilidade elitista estão se agudizando e existe um franco processo de reorganização da governança global nesse sentido. Será que os termos “terrorismo” e “genocídio” voltarão com força às manchetes, mas somente em alguns casos, enquanto a sociedade internacional assiste, passivamente e em tempo real, o genocídio do povo palestino em Gaza?
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