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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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Israel, Palestina e o racismo cultural

Toda a ciência hegemônica participa deste racismo e o traveste de ciência legitima de alguma maneira
19/10/2023 | 06h53

Antes de qualquer coisa, ao se falar neste conflito, é necessário lembrar que a ação do Hamas foi covarde e terrorista. Se o alvo tivesse sido o exército israelense ou suas instalações militares, a ação teria sido de legitima defesa de uma nação oprimida há décadas. Mas assassinar indiscriminadamente inocentes é algo bárbaro e indefensável. Dito isso, não deixa de ser interessante observar a força e a eficácia impressionante, a nível global, de um tipo de racismo pouco percebido e pouco discutido: o “racismo cultural”. O racismo cultural é aquele dirigido contra as culturas oprimidas que são percebidas como inferiores, produzindo o efeito típico de todo racismo que é “desumanizar” o outro a ser humilhado e perseguido.

A “desumanização” é o aspecto mais importante aqui, já que retira a possibilidade da identificação com o sofrimento alheio. Nos identificamos apenas com quem julgamos ser nosso igual, propiciando o reconhecimento da humanidade do outro. É essa identificação que causa a comoção com a dor alheia e a não aceitação do sofrimento evitável. Para se entender como isso funciona precisamos, antes de tudo, perceber que por trás de todo tipo de racismo se esconde a oposição espírito/corpo. A versão secular dessa oposição criada pelo filósofo mais influente entre todos, Immanuel Kant, identifica o espírito como as dimensões da inteligência para conhecer o mundo, da moralidade distanciada e racional e da capacidade de produzir e apreciar a beleza.

Qualquer raça, classe, gênero ou cultura que se pretenda dominante terá que se perceber como se fosse a encarnação das dimensões do espírito. E, por sua vez, o outro, seja a raça, a classe, o gênero, ou a cultura a ser oprimida tem que ser “animalizada”, ou seja, retirada dela qualquer identificação com o espírito, enfatizando, ao contrário, sua ligação com o corpo, que é o que nos liga aos demais animais. Se o espírito nos liga ao divino na condição humana, o corpo nos liga à animalidade sub-humana, mundo dos afetos incontrolados, do sexo e da agressividade.

No campo do racismo cultural globalmente hegemônico, e aceito por quase todos implícita ou explicitamente, os palestinos são associados às culturas oprimidas como os latino-americanos, os africanos, e os asiáticos. Os israelenses são percebidos, por outro lado, como americanos ou europeus, e são supostamente mais inteligentes, mais honestos, mais bonitos, além de mais brancos e ricos. Toda a ciência hegemônica participa deste racismo e o traveste de ciência legitima de alguma maneira. Partindo da legitimação cientifica, que forma todas as elites de qualquer campo de saber, se influencia também toda a indústria cultural, todos os filmes de ação e guerra, todos os seriados da Netflix e os comentários da imprensa hegemônica replicam os preconceitos contra os povos supostamente corruptos, agressivos, preguiçosos ou inconfiáveis.

A partir daí se cria uma realidade que passa a ter dois pesos e duas medidas para tudo. A evacuação de israelenses é feita de modo rápido e seguro. Os palestinos esperam até agora alguma ajuda que não vem. Muitos tratam a guerra como se tivesse nascido com o ataque do Hamas e não muito antes com a criação de um Apartheid por Israel, que humilha, oprime e persegue milhões de palestinos há décadas. Eles deixam de ser percebidos como gente e passam a ser vistos em associação ao terrorismo. O racismo cultural implícito confere legitimidade a essa associação e a partir daí a morte dessas pessoas não contam tanto.

Os exemplos de racismo cultural são diversos e cotidianos. Os 11 jornalistas franceses do Charlie Hebdo,  assassinados por terroristas em 2011, desencadearam uma poderosa comoção global que durou meses a fio. Quando centenas de africanos morrem no mediterrâneo, mal existe a notícia, a qual, quando há, é rápida e superficial e no outro dia esquecida, e a morte deles não comove ninguém.

Poucos percebem, inclusive entre os intelectuais, a força da dimensão simbólica. Mas sem ela não existe opressão legitima. A força e a opressão têm que ser legitimadas, senão ela não se reproduz no tempo. O conflito israelense e palestino mostra-nos essa realidade do modo mais patente possível. Todos os absurdos que vemos acontecer na guerra só se explicam por conta dessa forma de dominação cultural e simbólica implícita, muitas vezes aceita pelos próprios povos oprimidos como verdade, como precisamente acontece com o Brasil.
 

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