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Chico Alves

Cada proposta do antropólogo Luiz Eduardo Soares para a área de segurança pública está respaldada em uma trajetória que une de forma incomum a teoria acadêmica à prática. Com décadas de estudos sobre o tema, ele teve também passagens pelos espinhosos cargos de subsecretário de Segurança do Rio, entre 1999 e 2000, e secretário nacional de Segurança, em 2003, no primeiro governo Lula.

É esse currículo e também sua atuação progressista que o fazem ser ouvido com atenção pela esquerda.

Apoiador de primeira hora da candidatura de Lula na eleição contra Jair Bolsonaro, a quem desde cedo se opôs pelas posições reacionárias do ex-presidente, Luiz Eduardo diz que a vitória do petista foi muito importante para a democracia brasileira. Na área de segurança pública, no entanto, o desempenho do governo atual está muito aquém do desejado, avalia.

Nada que o tenha surpreendido, diante da arquitetura de um governo de frente ampla. Mesmo assim, confessa sua frustração.

A seguir, os principais pontos da entrevista:

 

 

AVALIAÇÃO DO ATUAL GOVERNO

Olha eu não estou de acordo, não me parece promissor, não me parece correto. Mas corresponde às minhas expectativas no sentido de que eu já estava preparado para o curso que as coisas tomaram. Não foi nenhuma surpresa.

Se eu tivesse que apostar, antes da transição mesmo, logo depois da vitória, eu apostaria que seguiria por esse caminho. No sentido do desejo, do que eu imaginaria necessário, certamente é uma frustração.

Eu acho que foi fundamental reconhecer a importância histórica da vitória do Lula, o papel importante do Flávio Dino, acho que nós todos devemos muito a ele. Não se trata de subestimar nem a vitória do Lula e nem o papel que o ministro tem desempenhado.

Mas na área específica de segurança pública, já era de se esperar o que está acontecendo.

 

FRENTE AMPLA E A SEGURANÇA PÚBLICA

Vamos dar um passo atrás pra refletir sobre a abordagem pela qual o governo federal tratou a segurança pública desde o período da transição. E aí é preciso ter uma perspectiva bem concreta. Ficou muito claro desde o início, e as sinalizações eram múltiplas: “Não vamos pôr a mão em cumbuca, não vamos de modo algum tocar nas questões espinhosas, porque a correlação de forças é muito delicada, a vitória foi por uma margem limitadíssima, e é preciso todo cuidado, estamos caminhando na cristaleira, com chantagem Congresso Nacional, chantagens da Faria Lima, da grande mídia corporativa e com a pressão dos governadores dos estados mais poderosos. Diante desse quadro, nós temos é que reduzir danos”.

Essa é a posição de quem pensou a estratégia do governo, e por que excluiu segurança pública. A ideia foi caminhar com muita cautela, reduzindo danos e não enfrentar mais contradições, mais embates, além daqueles que são inevitáveis, aqueles que vão ocorrer independentemente da vontade do governo – surgem focos todos os dias.

ATUAÇÃO SOMENTE NAS CRISES

Diante deste quadro, o pensamento foi: por que assimilar uma agenda que constitucionalmente não cabe ao governo federal? Embora, evidentemente, do ponto de vista político e histórico, tenha sido até o dia de promessas e compromissos de campanha. Mas, segundo a Constituição, prática da segurança pública está entregue aos governos estaduais.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública supostamente deveria articular uma política nacional e distribuir recursos para estimular boas políticas estaduais, mas sua autoridade não corresponde à magnitude da sua destinação e responsabilidade política. A autoridade prática é nenhuma. Portanto, nós temos instâncias federais com atribuições muito específicas.

O governo federal tradicionalmente, nesse quadro institucional, aparece como grande irmão protetor, que dá as mãos solidariamente aos governos estaduais nos momentos de dificuldade, nos momentos de crise. E assim sai sempre bem na foto, porque não é atingido pelas críticas, pelas cobranças. E nos momentos críticos se faz presente com a Força Nacional, que é muito pequena, e aparece como uma resposta política, aparece como resposta positiva. E as GLOs, das quais nós temos que fugir agora como o diabo da cruz, mas que era utilizada sempre em momentos crítico.

SEM MINISTÉRIO PARA A SEGURANÇA

O governo federal lavou as mãos ao longo desse tempo, não só os governos do PT, mas os subsequentes. Era algo conveniente afastar-se dessa questão. Esse é o raciocínio político muito óbvio que ficou muito patente. O governo já tem muito desgaste e aproximar-se da segurança pública. É sempre só uma redução de danos. Isso ficou muito patente já no período de transição e a indicação de que não haveria a criação do ministério (específico para segurança pública).

Para você ter a pasta, tem que haver antes a apresentação de uma política de segurança pública. E uma política nacional, nessa área, no governo do PT, mas de coalizão, faria desse ministério o “ministério da reforma”, tratando de uma segurança pública em andrajos, degradada.

Do ponto de vista histórico, do ponto de vista social, só teria problema. Do ponto de vista político, para quem está pensando no dia a dia, para quem está com a cabeça no varejo da política, seria obrigado a enfrentar conflitos interinstitucionais, debates sobre lei de drogas, a questão do encarceramento, a Lei de Execuções Penais…

Veja a quantidade de problemas que se somaria aos outros que já decorrem de uma agenda imperativa. Era de se esperar que o governo dissesse: “não faz nenhum sentido, ainda mais nesse momento”. Se criam um ministério, criam necessariamente compromissos, responsabilidade. Então, o que o ministro Dino fez? Do ponto de vista dessa reflexão, ignorou politicamente a Secretaria Nacional de Segurança Pública, convidou para o cargo uma pessoa distante dessa área, para não chamar atenção para essa temática.

ATUAÇÃO DE FLÁVIO DINO

Brasília(DF), 17/08/2023 – Entrevista do ministro da Justiça, Flávio Dino. Foto:Wilson Dias/Agência Brasil

O ministro reduziu toda a sua atuação nessa área a algumas iniciativas como a investigação do assassinato de Marielle, algumas ações da Polícia Federal aqui e ali, e a sua única pauta importante da segurança pública, que é retomar a questão do desarmamento e reverter as ações desastrosas do Bolsonaro.

E, além disso, estabelecer boas relações com os estados. Embora o ministro tenha vindo ao Rio de Janeiro para se reunir com moradores da Maré, ele também se encontrou o governador Cláudio Castro que tem comandado um verdadeiro genocídio no estado. Ele não teve nenhum pudor de se referir à aliança com o estado na transferência de recursos, embora o governador tenha liderado esse genocídio.

Acho que aí o ministro exagerou no seu pragmatismo e nos chocou a nós que somos militantes, ativistas, pesquisadores, que atuamos nessa área de direitos humanos e segurança pública.

ESQUERDA X SEGURANÇA PÚBLICA

O fato concreto é que o campo no qual eu me inscrevo, o campo das esquerdas, até hoje, desde o processo Constituinte, desde a transição democrática até hoje, a despeito de ter sempre se manifestado em defesa dos direitos humanos, crítico da violência policial, etc, não apresentou à sociedade brasileira uma proposta objetiva, realista de mudança.

Reformas institucionais, reorientações práticas, reconfiguração da arquitetura da segurança pública, da lei de drogas, do encarceramento em massa. Houve iniciativas individuais e de grupos da sociedade civil, mas partido algum apresentou à sociedade brasileira uma alternativa. A esquerda tem sido mais efetiva na crítica e na denúncia.

REPRESSÃO, PALAVRA MALDITA

A rigor, garantir direitos humanos é uma tarefa crucial das polícias. Então você impedir que alguém seja agredido, que alguém tenha seus direitos atacados, é um exercício de afirmação de direitos humanos. É segurança pública também. O ideal é que possamos pensar de forma mais integrada.

Inclusive, tem uma palavra horrorosa, que se tornou maldita, por boas razões na parte do campo progressista, que é a palavra repressão. Tem a ver com limitação de liberdade, negação de autonomia. No entanto, nenhum de nós definiria como repressora uma ação que limitasse a liberdade de alguém disposto a violar uma criança. Nós todos nos lançaríamos contra o agressor pra defender uma criança e não pensaríamos que estaríamos reprimindo a liberdade dessa figura infame. Nós estaríamos garantindo a integridade física da vítima. Estaríamos reprimindo aquela ação.

A repressão, que está ligada a ditadura, a força, pode ser usada para descrever uma conduta que segue os direitos humanos, que e é essencial à democracia. Chamamos de repressão qualificada.

DIREITA HEGEMÔNICA NO SETOR

Temos sido efetivos nas críticas e nas denúncias, mas incapazes de apresentar à sociedade um projeto sistemático e realista de transformação.

No Brasil, temos uma situação babélica que inviabiliza o debate. Mesmo antes dos fascistas emergirem com força, embaralhando tudo, alguém dizia A e ao invés do interlocutor reagir dizendo; “Discordo de A e sugiro B”, o interlocutor trazia o assunto Y.

Falando da esquerda não se pode deixar de falar nos governadores. Que não só não tem sido capaz de formular alternativas e colocar em prática, como muitas vezes têm abraçado as políticas da direita e com especial ímpeto, de uma forma populista e demagógica.

No Rio de Janeiro, no Brasil, nós temos tido por décadas um laboratório à direita, que foi hegemônica na área de segurança pública e explorou todas as possibilidades, com mais violência policial, leis mais duras, encarceramento mais intenso… Tivemos aqui a oportunidade de ver na prática esse caminho não funciona. Nós estamos vendo, né?

PÉSSIMOS RESULTADOS

Desastres sobre desastres, a situação é catastrófica, nós temos quase 50 mil homicídios dolosos por ano no Brasil. Isso oscila mais em função de maiores ou menores entendimentos entre as facções criminosas que em função de política adotadas pelos estados. A oscilações têm mais a ver com as dinâmicas do crime.

O nível de violência policial inacreditavelmente alto, esse quadro que nós conhecemos. Se tivermos o mínimo de honestidade intelectual e respeito à coisa pública temos que reconhecer que não está dando certo. E buscar um caminho alternativo.

DIREITOS HUMANOS E o cotidiano

As pessoas nos dizem que essa história de direitos humanos é muito bonita, aplaudem nosso compromisso, mas têm uma prioridade: “Olha, eu quero que meu filho chegue em casa vivo. Se para isso for necessário sacrificar vida de outros, dizem, que isso seja feito. Se para isso for preciso mais violência policial contra os vizinhos, que seja. Pago qualquer preço para garantir a segurança pública”. Esse é o raciocínio.

O que aconteceu é que historicamente se passou aos policiais uma licença para matar. Houve uma autorização para execução extrajudicial. Tivemos inclusive prêmios para eles, houve governadores que fechavam os olhos ou estimulavam.

COLHENDO INSEGURANÇA

Quando se dá autorização ao policial para matar, dá também autorização para não matar. O poder sobre a vida e a morte. Isso tem um valor extraordinário, isso equivale a uma moeda, que se inflaciona rapidamente. O policial vai dizer ao suspeito: “Não me custa nada matar, isso pode até projetar minha carreira. Quanto você me dá para eu não te matar?” Claro que isso é uma figura didática.

Isso acontece em um caso isolado, depois em outro caso isolado… Esse processo vai se ampliando e segue para a organização e sistematização, que rege toda lógica econômica legal ou ilegal, em benefício do lucro. O policial diz: “Vamos acabar com esse negócio de ‘eu te pego aqui e solto ali’, vamos organizar, que é melhor para os dois lados: vocês me pagam um valor permanente – o arrego – ou um percentual sobre o negócio e a gente não se estressa e nem se arrisca mais”

Aí se estabelece o contrato, o acordo, que é uma forma de quase institucionalizar, de padronizar o que antes era crime. Isso fortalece muto o negócio criminoso e aumenta as disputas no interior da polícia.

Então, o crime cooptou setores da polícia em detrimento do trabalho de segurança. Plantamos violência policial, liberdade para matar, e estamos colhendo mais insegurança.

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