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Vozes silenciadas na enchente gaúcha: o que falta aprender?

Mais de 80 territórios indígenas do Rio Grande do Sul foram afetados pelas enchentes que atingiram estado
13/06/2024 | 17h08

Por Iris Nabolotnyj*

Haverá linha do tempo?
Para tecer a estética catástrofe?
Em cada ponto extremo um nó
de viração e tempestade,
corroídas pela ganância ignorância
em negação climática…
Haverá linha do tempo?
Para reconstruir as vestes do tecido social?

(Iris Nabolotnyj Martinez)

 

A devastação das enchentes gaúchas retrata um cenário doloroso de apagamento sistemático das vozes marginalizadas. Os primeiros a testemunhar silenciosamente essa realidade, onde o desenvolvimento sustentável e a preservação do ecossistema são negligenciados, foram os guaranis, cuja história remonta antes da chegada dos colonizadores europeus, enquanto saboreavam o mate. Diante desse contexto, à medida que os dias se alongam e as sombras se estendem, surge a necessidade premente de reflexão: quanto ainda precisamos aprender?

Mesmo envolvidos no acolhedor ritual da mateada ao amanhecer ou ao entardecer, muitos de nós ignoramos aspectos essenciais da nossa própria tradição. Permanecemos relutantes quanto à urgência da reforma agrária e à adoção de hábitos de consumo agroecológicos. Em nossa busca por respostas, ainda depositamos nossa fé em algo superior para resolver os problemas que nós mesmos criamos, desconsiderando a complexidade das relações entre nós e o meio ambiente que nos cerca. É imperativo resgatar a memória histórica para compreender que aquilo que atualmente consideramos como tradição é apenas um fragmento de uma narrativa mais ampla. Esta narrativa, por sua vez, está repleta de lacunas devido à falta de informações provenientes das epistemologias ancestrais.

Registros históricos nos transportam para o ano de 1609, quando os jesuítas, em sua missão de catequização, depararam-se com os povos guaranis na fronteira oeste do estado. Testemunharam então uma sociedade matriarcal, onde as mulheres desempenhavam papéis de liderança, cuja grandiosidade era simbolizada pelos seus longos cabelos. Porém, a imposição das normas culturais europeias trouxe consigo não apenas a violência da colonização, mas também o apagamento das identidades e saberes dessas mulheres, que eram exímias horticultoras, coletoras, ceramistas, figuras centrais em rituais, mas que foram rotuladas de forma pejorativa em correspondências endereçadas à Corte Espanhola como “demoníacas”.

Hoje, mais de quatro séculos depois, o Rio Grande do Sul abriga mais de 140 comunidades indígenas, incluindo aldeias como Kaingang Guarani em Porto Alegre e Tekoá Koenju em São Leopoldo. No entanto, após a recente tragédia das enchentes, essas comunidades enfrentam severos desafios, afetando mais de 80 territórios indígenas na região. O descaso das autoridades locais foi ainda mais evidente, desde a destruição criminosa de casas e edificações na aldeia Pekuruty, que foi realizada sem autorização dos moradores pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), até o desamparo institucional que agravou a vulnerabilidade dessas populações. A situação é particularmente crítica em municípios como Porto Alegre, Canoas, Eldorado, Esteio e Sapucaia do Sul, onde as organizações indígenas e indigenistas estão em estágio preliminar de levantamento para auxiliar campanhas de doação e apoio por parte das autoridades públicas.

Além dos povos indígenas, registros datados desde o século XVIII, remontam que no período colonial rio-grandense sobrevivem cerca de 250 quilombos em todo o estado. Essas comunidades se formaram principalmente a partir da resistência diásporos africanos escravizados que fugiam das fazendas em busca de liberdade e autonomia. Os quilombos urbanos na região metropolitana conta com 11 territórios autodeclarados que representam centros de identidade e cultura da comunidade negra, mas que também enfrentam desafios marcantes de discriminação, pobreza e acesso limitado a serviços básicos.

Os quilombolas também foram atingidos pela negligência estadual à direita do espectro político diante da enchente gaúcha, como testemunhamos nos territórios de Unidos do Lajeado, Vila do Sabugueiro, Sarandi, entre outros. Nessas áreas, famílias inteiras perderam suas casas e meios de subsistência devido à falta de acesso a serviços básicos e à destruição causada pelos diques que falharam.

Entretanto, essa tragédia vai além da “mera” perda material. Ela representa o desaparecimento da memória histórica, da identidade política, de laços profundos com a terra ancestral e sua preservação. As consequências devastadoras poderiam ter sido evitadas com ações preventivas por parte dos governos estadual e municipais – mais especificamente, a prefeitura de Porto Alegre.

No entanto, o governador Eduardo Leite (PSDB) e o prefeito Sebastião Melo (MDB) ignoraram alertas e sucatearam estruturas de proteção civil, desconsiderando análises realizadas por cientistas gaúchos que previam a tempestade iminente. Ainda assim, eles permanecem à frente das ações emergenciais, administrando recursos públicos e doações enviadas por voluntários via Pix de maneira arbitrária, enquanto a população enfrenta a maior destruição climática da história do Rio Grande do Sul, uma dor que a própria destruição material não traduz plenamente.

O amadorismo em gestão pública, o desconhecimento em política organizacional e o despreparo em habilidades básicas de estratégias sobre crises ambientais contribuíram diretamente para a maior devastação ambiental da história do estado. Isso se manifesta através da captura regulatória, onde interesses privados moldam políticas em detrimento do bem público, resultando em regulações ambientais enfraquecidas, aumento do risco de corrupção, incentivos perversos que priorizam lucros de curto prazo sobre práticas sustentáveis, e a desigualdade e injustiça ambiental, onde comunidades marginalizadas sofrem desproporcionalmente os ônus ambientais. Essas dinâmicas evidenciam a culpabilidade criminosa dessas figuras políticas, pelas consequências humanas, sociais, políticas e econômicas sem precedentes.

Enquanto refletimos sobre o respeito à terra que pisamos e sobre a ordem natural que aceitamos sem questionar, as vozes das comunidades marginalizadas estão sendo cada vez mais apagadas de nosso estado. A ganância e a ignorância não questionam a estética da catástrofe; pelo contrário, o apagamento intencional das vozes marginais é um projeto político arquitetado. Essa tragédia vai além da perda material; é o silenciamento das vozes que clamam por justiça.

Nossa terra implora por respeito, nossas tradições clamam por reconhecimento, e nossos povos anseiam pelo direito de pertencer. Não podemos nos dar ao luxo de repetir os mesmos erros nas próximas eleições. Precisamos eleger representantes comprometidos em preservar e valorizar as vidas e culturas que formam o verdadeiro patrimônio do Rio Grande do Sul. As águas que engoliram nossas cidades ecoam as identidades apagadas, nos lembrando do alto preço de reconstruir o tecido social. Este é um apelo para ouvir, aprender e agir, antes que seja tarde demais.

 

* Cientista Social (Unipampa), mestra em Políticas Públicas (Unipampa) e doutora em Ciência Política (Ufrgs). Feminista, mestiça e fronteiriça.

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