O artigo “O caos atual destrutivo e o caos generativo como saída salvadora” será completado pela seguinte reflexão feita há um ano que aqui prolonga a anterior.
Como poucas vezes na história geral da humanidade, a crise sistêmica e generalizada dá prenúncios apocalípticos que vêm sob o nome do antropoceno (o ser humano é o grande meteoro ameaçador da vida), do necroceno (morte massiva de espécies de vida) e ultimamente do piroceno (os grandes incêndios em várias regiões da Terra), tudo da irresponsável ação humana. Além disso, são consequências do novo regime climático, dado como irreversível e não em último lugar, o risco de uma hecatombe nuclear a ponto de exterminar toda a vida humana a propósito da guerra Rússia-Ucrânia e as potências ocidentais. Putin já alertou que se houver forças militares ocidentais na Ucrânia pode usar armas nucleares táticas. Destroem pouco mas deixam a atmosfera toda contaminada.
A situação geral do mundo não suscita otimismo, antes, abatimento e mesmo pessimismo e preocupação séria sobre o eventual fim de nossa espécie. Muitos jovens se dão conta de que, ao se prolongar o atual curso da história, não terão um futuro apetecível. Alguns se resignam, como recentemente num impressionante livro denunciou Steven Rockfeller: boa parte da juventude norte-americana se desinteressa pelos valores tradicionais e democráticos da nação (cf. Spiritual Democracy and Our Schools, 2022). Outros engajam-se corajosamente num movimento já planetário de salvaguarda da vida e do futuro de nossa Casa Comum, como o faz a jovem Greta Thunberg. Não deixa de soar pesadamente a advertência do Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti (2020): ”Estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (n. 32).
É neste contexto que buscamos alguma esperança num dos maiores cientistas modernos já falecido, o russo-belga Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química em 1977, principalmente em O fim das certezas (Unesp, 1996). Ele e sua equipe criaram uma nova ciência, a física dos processos de não equilíbrio, quer dizer, em situação de caos.
Sua obra coloca em xeque a física clássica com suas leis determinísticas e mostra que a flecha do tempo não volta para trás (irreversibilidade) e aponta para probabilidades e nunca para certezas. A própria evolução do universo se caracteriza por flutuações, desvios, bifurcações, situações caóticas, como a primeira singularidade do big bang, geradora do universo. Enfatiza que o caos nunca é só destrutivo. Ele alberga uma ordem escondida que, dadas certas condições, irrompe e dá início a um outro tipo de ordem. O caos, portanto, pode ser generativo, pois, do caos surgiu a vida, como ele mostrou em sua obra clássica (Order out of Chaos, 1984).
Nesse cientista que era também um grande humanista, encontramos reflexões que não são soluções, mas inspirações para desbloquear nosso horizonte sombrio e catastrófico. Pode gerar alguma esperança a despeito da disputa perigosa pela hegemonia do processo histórico, unipolar (EUA) ou multipolar (Rússia, China e os BRICS).
Prigogine parte dizendo que o futuro não está determinado. “A criação do universo é antes de tudo uma criação de possibilidades, as quais algumas se realizam, outras não”. O que pode acontecer está sempre em potência, em suspensão e em estado de flutuação. Assim ocorreu na história das grandes dizimações ocorridas há milhões de anos no planeta Terra. Houve épocas, especialmente, quando ocorreu o rompimento da Pangeia (o continente único) que se partiu em partes, originado os vários continentes. Cerca de 75% da carga biótica desapareceu. A Terra precisou de alguns milhões de anos para refazer a sua biodiversidade.
Vale dizer, daquele caos surgiu uma nova ordem. Assim aconteceu com a última grande extinção em massa acontecida há 67 milhões de anos que levou todos os dinossauros mas poupou o nosso ancestral que evoluiu até atingir o estágio atual de sapiens sapiens ou, realisticamente, sapiens e demens.
Prigogine desenvolveu o que ele chamou de “estruturas dissipativas”, como já explicamos no artigo anterior. Elas dissipam o caos, vale dizer, os dejetos são transformados em novas ordens. Assim, numa linguagem pedestre, do lixo do sol – os raios que se dispersam e chegam a nós – surge quase toda a vida no planeta Terra, especialmente a fotossíntese das plantas que nos entregam o oxigênio sem o qual ninguém vive. Essas estruturas dissipativas transformam a entropia em sintropia. O que é deixado de lado como caótico é retrabalhado até formar uma ordem nova. Desta forma, não iríamos ao encontro da morte térmica, a um colapso total de toda a matéria e energia, mas de ordens cada vez mais complexas e altas até a uma suprema ordem, cujo sentido último nos é desconhecido. Prigogine recusa a ideia de que tudo termina no pó cósmico. Quem sabe, seria a tão sonhada noosfera de Pierre Chardin (disponível aqui).
Como consequência, Prigogine é otimista face ao caos atual, pois é inerente ao processo evolucionário. Nesta nossa fase, cabe ao ser humano a responsabilidade de, ao conhecer o dinamismo da história em aberto, assumir decisões que deem prevalência ao caos generativo e fazer valer as estruturas dissipativas que ponham freio à ação letal do caos destrutivo. O nosso destino está em nossas próprias mãos.
“Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão.” O ser humano comparece como um ser livre e criativo e poderá transformar-se e transformar o caos em cosmos (ordem nova).
Tal parece ser o desafio atual face ao caos que nos assola. Ou tomamos consciência de que sobre nós recai a responsabilidade de querermos continuar sobre este planeta ou permitir, por nossa irresponsabilidade, um armagedom ecológico-social. Seria o trágico fim de nossa espécie.
Alimentamos com Prigogine a esperança humana (e também teológica) de que o atual caos representa uma espécie de parto, com as dores que o acompanha, de uma nova forma de organizar a existência coletiva da espécie humana dentro da única Casa Comum, incluindo toda a natureza. Se grande é o risco, dizia um poeta alemão, grande também é a chance de salvação. Ou nas palavras das Escrituras: “Onde abundou o pecado (caos), superabundou a graça” (nova ordem: Epístola aos Romanos 5,20). Assim esperamos e assim o queira o Deus.
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