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Combater a doença ou combater os doentes?

Talvez gostem de saber que há vinte e cinco anos foi aprovada em Portugal uma nova estratégia de luta contra a droga
05/07/2024 | 07h13

Agora que o Supremo Tribunal Federal decidiu descriminalizar o consumo de maconha talvez gostem de saber que há vinte e cinco anos foi aprovada em Portugal uma nova estratégia de luta contra a droga (Resolução do Conselho de Ministros nº 46 / 99, acessível aqui)  que dizia assim: “Descriminalizar o consumo de drogas, proibindo-o como ilícito de mera ordenação social”. Este pequeno ponto mudou tudo. O Estado passou a tratar os consumidores de droga como doentes, não como delinquentes. A Justiça libertou-se dos processos-crime de consumo de estupefacientes que obstruíam os tribunais e a sociedade venceu lentamente o estigma social. Os toxicodependentes deixaram de temer o Estado e passaram a frequentar sem receio os serviços públicos de saúde. Em breve síntese, a mudança foi a seguinte: o dogma de uma “sociedade livre de drogas” foi substituído pelo pragmatismo mais realista de uma política pública que visa a” redução de danos” que o uso de droga tem na sociedade.

Vieram as críticas. Melhor dizendo, choveram as críticas, vindas, como era previsível, dos setores mais conservadores. Dois ângulos de ataque: o primeiro foi o clássico argumento de que a descriminalização transformaria o país num paraíso internacional de consumo de drogas; o segundo sustentava que o consumo iria aumentar. Nada disto se verificou. A metáfora de Portugal como destino turístico para consumo de drogas durou pouco e caiu rapidamente no ridículo. Ninguém apanha aviões para ir consumir droga. Dez anos depois o instituto norte-americano CATO (não, não é um instituto de esquerda) escreveu assim: “os números mostram, avaliados em todos os indicadores, que o quadro de descriminalização portuguesa foi um retumbante sucesso.”

A estratégia política de não legalizar, mas descriminalizar, pode parecer confusa e até um pouco hipócrita, mas resulta. Por um lado, a descriminalização (e a substituição por multa e encaminhamento para tratamento) permitiu vencer a desonra social que o consumo representa retirando-o dos tribunais e das prisões. Por outro lado, a não legalização permitiu manter Portugal no quadro das convenções internacionais de combate à droga das Nações Unidas. Todavia, o segredo do êxito da política deve-se ao fato de que já ninguém acreditar na vitória da chamada “guerra às drogas”. Alguma coisa nova era necessária. Prender os consumidores não resolvia nenhum problema social, mas agravava muitos. O mesmo se passa no Brasil: ninguém acredita, mas a resposta oficial continua a ser a mesma: punir e prender. Hoje, dia em que leio nos jornais que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o consumo de maconha, estou convencido que se vai ouvir o mesmo – vem aí o paraíso da droga; vem aí um aumento do consumo, vem aí a desgraça. Pois, não me parece. O que vem aí é uma coisa muito simples – esvaziar as prisões de toxicodependentes. E isso, francamente, é o melhor que o Brasil pode fazer por si próprio. E, depois, talvez o Brasil não seja tão conservador como muitos políticos pensam que é.

 

Ericeira, 29 de junho de 2024

 

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