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50 anos da Editora Alfa-Ômega

Editora foi responsável por lançar as "Obras Escolhidas" de Marx e Lenin durante a ditadura e também o livro "A Ilha", que tratava da Revolução Cubana quando o assunto era tabu no país
26/10/2023 | 12h12

Por Sandra Reimão (USP-EACH), Flamarion Maués (Instituto Federal de São Paulo) e João Elias Nery (FAPCOM – Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação)[1]

 

No dia 21 de outubro, um sábado, realizou-se no bairro de Pinheiros, na capital paulista, a comemoração dos 50 anos da Editora Alfa-Ômega, com o lançamento do livro Editora Alfa-Omega: produção literária em tempos de censura (1973-1984), de Gustavo Orsolon de Souza.

Cinquenta anos atrás, em 1973, no mesmo bairro paulistano, Fernando e Claudete Mangarielo criaram a Alfa-Ômega com dois objetivos: ser um canal de difusão e debate de ideias progressistas sobre o Brasil e o mundo em tempos sombrios de ditadura (uma tarefa muito ousada nessa época) e ser também a empresa que proporcionaria ao jovem casal sua fonte de renda e sustento.

Era o período do chamado “milagre econômico brasileiro”, época caracterizada por forte repressão política e grande crescimento econômico combinado com intensa concentração de renda. A propaganda oficial reverberava o clima do Brasil “grande potência”, do “ame-o ou deixe-o”.

Empreendimento de risco sob todos os aspectos, seja do ponto de vista político, pois vivia-se um dos momentos mais repressivos da ditadura iniciada em 1964, seja pelo aspecto empresarial, pois editar livros – e ainda mais livros de qualidade – nunca foi negócio fácil no Brasil.

Aliás, são pouquíssimas as editoras com este perfil que conseguiram a proeza de chegar aos 50 anos mantendo-se fiel à sua linha editorial e sob o controle dos sócios fundadores ou seus herdeiros. Entre essas podemos citar, além da Alfa-Ômega, as editoras Global, Hucitec e L&PM.

Adotando desde suas origens uma postura editorial de cunho político e de esquerda, dentro do que era possível na época, a Alfa-Omega foi uma das editoras políticas mais atuantes nos anos 1970 e 1980 no Brasil, caracterizando-se como editora de oposição. Tinha afinidade com o pensamento marxista, e politicamente se aproximava de algumas posturas do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas não era uma editora partidária ou sectária.

Tinha entre seus colaboradores alguns professores da Universidade de São Paulo (USP), como Reynaldo Xavier Carneiro Pessoa e José Sebastião Witter. Seu catálogo de obras de oposição é muito grande. Publicou um dos maiores best-sellers entre os livros de oposição, A ilha (um repórter brasileiro no país de Fidel Castro), de Fernando Morais, lançado em 1976. Lançou também, em 1977, um dos primeiros romances a falar da guerrilha urbana no Brasil, Em câmara lenta, de Renato Tapajós, que causou a prisão do autor.

Em seus quatro primeiros anos de atividade, de 1973 a 1976, a editora publicou 44 títulos, sendo 16 deles livros de autoria de docentes da USP, numa época em que o meio universitário era um importante setor de oposição ao regime.

Uma das características da editora, principalmente em seus primeiros anos de atividade, foi a edição (ou reedição) de obras fundamentais sobre a história brasileira, de autores altamente conceituados, entre eles Afonso Arinos de Melo Franco (sobrinho), Barbosa Lima Sobrinho, Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Victor Nunes Leal e Sergio Buarque de Holanda.

A editora esteve, nestes 50 anos, sob a batuta editorial de Fernando Mangarielo, homem de personalidade forte e que sabia muito bem quais caminhos a editora devia seguir: publicar “o pensamento crítico brasileiro”. Agora, além da presença sempre constante de Claudete Mangarielo, Fernando passou o bastão para seu filho, também Fernando, buscar dar continuidade à ação da editora.

Na segunda metade dos anos 1970 a Alfa-ômega começou a editar literatura nacional, coerente com seu lema: “Autor nacional – Cultura brasileira”. Editou também as obras escolhidas de Marx, de Lenin e de Mao Tsetung.

A análise de seu catálogo mostra que os principais temas abordados são história, sociologia, política, filosofia, economia, clássicos do marxismo, pluralismo jurídico.

Mangarielo destacava, quando da fundação da editora, três pontos sobre a linha editorial. Primeiro, a ênfase no autor nacional. Depois, afirmava que a editora pretendia ser “uma janela aberta para os escritores preocupados com a nossa realidade, com o Brasil de agora, com nosso processo econômico-político”. E, por último, enfatizava que a editora “se voltará para as necessidades do ensino superior em nosso país”.

Um dos momentos mais tensos da história da editora ocorreu depois da edição do romance Em câmara lenta, de Renato Tapajós, lançado em maio de 1977. O livro foi um dos primeiros a falar da guerrilha urbana no Brasil. Tapajós havia sido militante da organização Ala Vermelha, que defendia a luta armada para a derrubada da ditadura, e estivera preso por este motivo de 1969 a 1974. O romance, portanto, não só trata da experiência da luta armada como foi escrito por uma pessoa que participou dessa luta.

O livro trazia uma lúcida autocrítica da luta armada e fazia uma contundente denúncia da prática de torturas contra opositores políticos durante a ditadura. Apesar da visão crítica sobre a guerrilha, a ditadura viu o livro como uma incitação à luta armada – uma leitura equivocada da obra. Por esse motivo o autor foi preso em julho de 1977, pouco mais de dois meses após o lançamento do livro. Trata-se de um dos poucos casos de autor preso durante a ditadura militar por causa do conteúdo de um livro. O autor foi também processado pela edição do livro, e Fernando e Claudete Mangarielo foram chamados para depor no processo, num claro ato de intimidação. Tapajós ficou preso cerca de um mês em São Paulo. Fernando também chegou a ficar detido em função da edição do livro.

Mas o que tornou a editora conhecida de um público mais amplo foram dois outros livros, que se tornaram grandes sucessos comerciais: A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro (1976) e Olga: a vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas (1985), ambos de autoria do jornalista Fernando Morais.

A experiência com bancas de jornal

Ainda no período em que a repressão política era forte, Mangarielo ousou lançar, em 1978, a coleção História Imediata, que seria vendida em bancas de jornal, um grande canal de vendas de impressos nessa época. Esta coleção era editada em formato de revista (19 x 28 cm), em papel jornal, e trazia grandes reportagens sobre temas políticos quentes e polêmicos, e sempre de questionamento do regime militar. Foram lançados cinco volumes: A guerrilha do Araguaia, de Palmério Dória, Sérgio Buarque, Vicent Carelli, Jaime Sautchuck (1978); A greve na voz dos trabalhadores: da Scania a Itu (Oboré);  Araceli: corrupção em sociedade: tóxico, tráfico de influência, violência, de Carlos Alberto Luppi (1979); D. Paulo Evaristo Arns: o cardeal do povo, de Getúlio Bittencourt, e Paulo Sergio Markun (1979); e A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, de Luiz Henrique Romagnoli e Tania Gonçalves (1979).

Entre 1984 e 1988 a Alfa-Omega editou também a revista Socialismo & Democracia, voltada para debates políticos e ideológicos. Editada em formato de livro, tinha periodicidade bimestral (ou quase) e no total lançou 13 edições.

Uma editora de oposição marcante

Feito este muito breve resumo da ação da editora, em particular nas duas primeiras décadas de sua existência, não resta dúvida de que a Alfa-Omega foi uma das mais destacadas editoras de oposição dos anos 1970 no Brasil. Atraiu autores que tinham posicionamento crítico em relação à ditadura, com destaque, de um lado, para intelectuais ligados à USP, e, de outro, para jornalistas que, mesmo atuando na grande imprensa, expressavam pontos de vista críticos utilizando as brechas existentes. Publicou também, durante alguns anos, novos autores brasileiros de literatura, alguns dos quais ganhariam destaque no campo da ficção.

Além disso, marcou sua existência pela edição de obras de alguns dos principais teóricos marxistas: Karl Marx, Frederich Engels, Lenin e Mao Tsetung.

Fernando Mangarielo tem uma definição pessoal sobre o trabalho do editor: “O editor tem muito do garimpeiro.  É uma pessoa que tem que ter uma energia muito grande, tenacidade para remover montanhas, para catar pelotinhas e saber identificar que aquele é o metal precioso, que é o autor, o título… Como deve ser o título, qual deve ser o número de páginas, a apresentação gráfica, o preço para o mercado. Começa-se do máximo para o mínimo ou do mínimo para o máximo? Todas essas dúvidas. Essa dúvida metódica, cartesiana, tem que ser aplicada. […] É como um maestro, uma orquestra com cem instrumentos e mais 104 vozes do coral, você tem que fazer com que tudo isso entre no tempo certo”.

Mas Claudete Mangarielo tem outra maneira de classificar a relação muito especial de seu marido com os livros que edita: “Até hoje, o livro para o Fernando não é um produto, é um filho. Ele nasce da alma dele”.

Neste século, foram muitas as dificuldades econômicas que a Alfa-Omega enfrentou. Mas um olhar para os 50 anos de atividade da Editora Alfa-Omega capta de maneira indubitável a sua persistência em uma linha ideológica de esquerda, sem alterá-la ao “gosto do mercado no momento”. Neste sentido, Fernando e Claudete Mangarielo são exemplos de produtores culturais de resistência e persistência, mantendo-se fieis a uma linha editorial engajada à esquerda, mesmo que tenha representado certa retração comercial de sua editora, o que mantém o perfil da empresa como editora de oposição – agora não mais oposição à ditadura, mas sim ao pensamento e à ideologia dominante –, com sua trajetória empresarial subordinada às finalidades políticas que orientaram sua criação e percurso. Atuações como as de Fernando e Claudete Mangarielo, editores que divergem das tendências dominantes no mercado livreiro, propiciam a promoção e manutenção da bibliodiversidade, da disponibilização de títulos de diversas, diferentes e até mesmo antagônicas posturas, ideias e opiniões em uma convivência necessária à constituição e manutenção de uma sociedade democrática.

Longa vida à Alfa-Ômega, agora sob a gestão, certamente renovadora, de Claudete Mangarielo e de Fernando Mangarielo Filho.

 

[1] Este texto se baseia no artigo de nossa autoria: REIMAO, Sandra; MAUES, Flamarion;  NERY, João Elias. “Alfa-Omega: o pensamento crítico em livro”. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comun.[online]. 2015, vol.38, n.1, pp. 169-190. ISSN 1809-5844.  http://dx.doi.org/10.1590/1809-5844201518.

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