A decisão foi anunciada na quarta-feira (26): Adélia Prado é a vencedora do Prêmio Camões 2024. Considerada por muitos a maior poetisa viva do Brasil, Adélia tem 88 anos e vive em Divinópolis, no interior de Minas Gerais.
Ainda jovem universitário, adquiri o hábito de frequentar sebos à procura de raridades. Foi no Largo de São Francisco, no centro do Rio de Janeiro, por volta do ano 2000, que a encontrei pela primeira vez. Como acredito em sinais, penso que Francisco de Assis é bem mais do que nome de praça.
Na prateleira empoeirada da seção de “Poesia”, abri um exemplar de Terra de Santa Cruz [1] e, na primeira página, uma dedicatória da autora: “Para Valdemar, o abraço da Adélia Prado, 10/04/81”. Bem, o sobrenome não era o meu, mas deixei esse detalhe para lá e tomei o exemplar como se me fosse entregue em mãos pela própria Adélia.
A capa do livro, vendido baratinho, não era atraente; o título não revelava muito e, quanto à autora, ainda não sabia de quem se tratava. Mas, intuitivamente, compreendi que estava perante uma dessas epifanias franciscanas. Logo na primeira leitura, deparei-me com versos como este: “A parreira verga de flores, eu durmo inebriada”. [2] Comprei o livro, primeiro pela dedicatória, depois por esse verso.
Fui cativado pelos seus poemas a desenvolver um olhar guloso de beleza — destreza para lavar os olhos e apurar todos os sentidos, sem nunca jogar um balde de água fria na fervura da sarça que arde. Apenas observar, sem pressa de saber “para quê”.
Poético e Sagrado
Uma oração que fala da saudade da mãe, do pai e da infância. A casa da nossa infância com a sua gente e sentimentos. Falando com Deus sobre os que não estão mais perto porque definitivamente foram para dentro. O tempo passa e a lembrança nos aguça o sentido do que é sagrado e do quanto a vida é efêmera. “Meu Deus, me dá cinco anos.” [3]
O poema “Orfandade” é uma oração que fala da mãe, do pai, da infância. O tempo impôs o silêncio e o vazio, imponderáveis. A mulher, se santa ou louca, não vem ao caso, fala dos seus sentimentos para Deus usando o formato poético. Saudades dos ausentes retratadas ao Deus presente. Orar não é mudar as coisas, mas colocar no papel o que estava escondido no coração.
Podemos dizer o mesmo de “Bucólica Nostálgica”. [4] Deus está presente nos versos em que o tema é a saudade. A cena é familiar. Coisas simples. O interessante é que não estamos diante de símbolos religiosos nem de ideias elevadas. A simplicidade de uma refeição feita daquele modo costumeiro.
Sem cerimônia, tudo cheira a casa da gente num dia comum. As pessoas sequer sabem que estão sendo observadas. Nenhuma menção aos utensílios ou toalha de mesa. A memória é gustativa. Refeições rápidas em que sequer a mesa é usada. Prato na mão ou no colo. O fogão à lenha com a sua quentura, estalos e cheiros.
O pai no intervalo do seu trabalho, na cozinha, comendo com gosto. Com essas lembranças é como se o fogão voltasse a acender e sentíssemos a quentura na pele.
Alguém deve estar perguntando como foi a entrada triunfal de Deus nessa poesia tão corriqueira. Simplesmente, não houve entrada sobrenatural que tenha quebrado o clima do comum. Deus chegou de mansinho, abriu as panelas, se serviu de arroz e feijão, taioba, ora-pro-nobis e abóbora. Depois, pegou a canequinha e tomou o seu cafezinho.
Espiritualidade prosaica
Para Adélia, Deus é de casa. Ele se ajeita no canto, se agacha e acha lugar. Mania dele de colocar uma banana no prato e misturar com a comida. Também come ligeiro, sem levantar a cabeça quase enfiada no prato.
Em “Bucólica Nostálgica”, assim como em “Orfandade”, prece e poesia são indissociáveis. Deus não aparece na cena para desempenhar participação especial a fim de alterar as coisas naturais. Ele participa da saudade, Ele ri e chora, escuta bem mais do que fala. Deus é de casa e não suportaria ser tratado com cerimônia.
Por esse viés, lemos as preces que parecem poemas e os poemas que acontecem como sinais humanos. As interlocuções com Deus não figuram como recurso retórico.
Em Adélia, orações soam como pensamentos indomados que insistem em serem escritos. O sentimento ganha vida. Orações que não são propriamente arremedo de bons argumentos para convencer o ouvinte.
Dona doida é santa, até provem o contrário. Mulher que enruga enquanto tudo ao redor parece rejuvenescer. A doida faz orações, a santa faz queixas. A doida disfarça sensatez, a santa se permite perder a compostura. A doida se cobre para esconder a nudez, a santa se despe para atrair os olhares. Na poesia de Adélia, não é uma ou outra. A doida e a santa é uma pessoa só: “Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa.” [5]
Em Adélia, Deus está mais para o “Totalmente Próximo” do que para o “Totalmente Outro”. Ela não diz essas coisas assim, na teoria. Ela vivencia essa relação marcadamente regional, temporal e familiar.
Espiritualidade simples, com cheiro de ensopado de galinha caipira com urucum.
[1] PRADO, Adélia. Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
[2] Ibid, p. 26.
[3] PRADO, Adélia. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Redord, 2015, p. 19.
[4] Ibid, p. 37.
[5] Ibid, p. 63.
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