Por Bernardo Cotrim
Muito já se escreveu sobre o futebol ser “muito mais do que um jogo”. O esporte mais popular do planeta, capaz de mobilizar multidões e despertar as mais intensas paixões, reflete também de forma ímpar as disputas existentes na sociedade: o coletivismo, a solidariedade e o respeito disputam palmo a palmo o terreno com a misoginia, o racismo, a LGBTfobia.
O recente episódio envolvendo a seleção argentina e sua tão alegre quanto ultrajante “comemoração” com cânticos racistas e transfóbicos é mais uma página repulsiva de uma história de conflitos e disputas.
Nas palavras do escritor Eduardo Galeano: “O futebol e a pátria estão sempre unidos; e com frequência os políticos e os ditadores especulam com esses vínculos de identidade.” Ao longo dos tempos, governos totalitários sempre tentaram capturar o futebol para instrumentalizá-lo e manipular os afetos da população.
Foi assim na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, nas ditaduras militares do Cone Sul. Bolsonaro, nosso mais recente postulante (fracassado) a ditador, frequentou mais estádios de futebol do que o seu gabinete de trabalho no Palácio do Planalto.
Mas o futebol também protagonizou resistências e rebeldias. Em 1942, onze jogadores do Dínamo de Kiev preferiram derrotar os alemães, em plena ocupação nazista da Ucrânia, e encarar o pelotão de fuzilamento, do que entregar o jogo em troca de suas vidas; em 2024, o brasileiro Vinícius Junior ousou enfrentar a liga espanhola e o racismo nos estádios.
Nas mais de 8 décadas entre os dois episódios, não foram poucos os rebeldes da bola e suas histórias de resistência. No início dos anos 1980, a Democracia Corintiana combinou futebol e enfrentamento à ditadura no seu “autogoverno dos jogadores organizados”. Em Chiapas (México), no ano de 2004, o argentino Javier Zanetti e o italiano Massimo Moratti, respectivamente capitão e presidente da Inter de Milão, protagonizaram a doação de uma ambulância e uma soma em dinheiro ao Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Como não falar da resistência republicana protagonizada por catalães e bascos contra as bombas de Franco ou da “voadora” do francês Cantona no torcedor que, aos berros, destilava xenofobia na arquibancada? Ou a luta pioneira de Afonsinho pelo passe livre? Como esquecer Maradona, tão rebelde que nos deixou no mesmo dia em que, quatro anos antes, morreu Fidel Castro?
Para encerrar, compartilho com vocês uma pequena seleção dos atrevidos, insubordinados e questionadores dos gramados brasileiros. Neste dia nacional do futebol, celebremos a luta daqueles que compartilham a rebeldia que dá sentido a este portal.
Wladimir — jogador que mais vezes vestiu a camisa do Corinthians, dirigente do sindicato dos atletas e militante do PT, o lateral esquerdo foi figura central na politização dos rebeldes Sócrates e Casagrande. Sem Wladimir, a Democracia Corinthiana não teria a mesma potência.
Juninho Pernambucano — censurado pela Globo e ameaçado pela direita, enfrentou os debates com a mesma elegância com que desfilava pelos gramados. “Me revolto quando vejo jogador e ex-jogador de direita. Nós viemos de baixo, fomos criados com a massa. Como vamos ficar do lado de lá? Vai apoiar Bolsonaro, meu irmão?”
Raí — o “irmão comportado” do Doutor Sócrates parece a antítese da rebeldia, mas não se omitiu das disputas. Depois de apoiar Lula contra Bolsonaro em 2022, fez-se presente no enfrentamento da esquerda francesa contra Le Pen e outros extremistas.
Reinaldo — o rei Reinaldo enfrentou a ditadura e o racismo, comemorou gols erguendo o punho como um militante dos Panteras Negras (o que provavelmente lhe custou a vaga na seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982) e, depois de pendurar as chuteiras, chegou a ser parlamentar pelo PT mineiro.
Sócrates — entre um passe de calcanhar e outro, Sócrates participou das Diretas Já, foi fichado pela ditadura e, junto com Wladimir e Casagrande, liderou a Democracia Corintiana. Negociado para a Fiorentina, surpreendeu a imprensa italiana ao afirmar o desejo de “ler Gramsci no idioma original e estudar o movimento dos trabalhadores”. Morto em 2011, sua rebeldia foi imortalizada no batismo do campo de futebol Dr. Sócrates, na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST.
Sentiu falta de alguém? Deixe aqui nos comentários a sua seleção de rebeldes!
*Bernardo Cotrim é jornalista e gerente de mídias do ICL Notícias
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