Leviatã
Terminei a última coluna anunciando uma surpresa, isto é, o convênio estabelecido por Edir Macedo entre o Antigo Testamento e a obra-prima de Thomas Hobbes, Leviatã. Publicado em 1651, o longo subtítulo principia a dissipar o espanto: Matéria, palavra e poder de uma república eclesiástica e civil. Leitor atento, quase exclusivo, da capa do livro, o Bispo Macedo mal pôde conter o entusiasmo com a ordem dos fatores: eclesiástico, claro, em primeiro lugar; civil, ainda mais óbvio, um apêndice, subordinado ao termo anterior.
(Nesse horizonte, impõe-se a consulta ao Antigo Testamento.)
“Mas, João, por favor! Hobbes não pensava exatamente assim…”
Calma… Refiro-me, aqui, à percepção interessada de quem assina frases excêntricas com uma desinibição intrigante. Avalie por si mesmo:
“Na ótica do filósofo inglês Thomas Hobbes, a honra parece ser apenas representativa, ou seja, não tem espontaneidade. Seria alguma coisa como ‘querer parecer’ o que realmente não se é para persuadir, tirar proveito, enganar, e por aí vai”.
(Por exemplo, fingir ser devoto para angariar dízimo? Outro ato falho? Confissão involuntária? Sigamos na leitura no ritmo de deixe a vida me levar.)
“De forma inconsciente, o que se pode observar é que essa sugestão hobbesiana parece ter se tornado em senso comum. Percebe-se que grande parte das pessoas, que possivelmente nunca ouviram falar de Thomas Hobbes, parece achar exatamente a mesma coisa quando se trata de políticos e da política, o que até certo ponto é aceitável para a formação de eleitores e cidadãos mais criteriosos em suas escolhas”.[1]
Na ótica do Bispo Macedo, tanto mais criterioso será o eleitor quanto mais ele votar em candidatos cristãos, ou, para ser mais preciso, eleger nomes indicados pelas lideranças da Igreja Universal do Reino de Deus. Nas próximas colunas, detalharei o passo a passo do projeto político da IURD.
Prometi arriscar uma hipótese para dar conta da inesperada evocação, por parte da dupla Macedo e Oliveira, à obra de Thomas Hobbes.
Não fugirei do desafio – é só esse o objetivo deste artigo.
(Deseje-me boa sorte.)
E por aí vai
Não é preciso ir muito longe. Melhor: basta retornar à fonte que se tornou dominante nas denominações neopentecostais que abraçaram o projeto político teonomista: o Antigo Testamento.
No fundo, o próprio Hobbes aludiu às Escrituras ao nomear dois de seus livros mais importantes: Leviatã (1651) e Beemote, lançado postumamente em 1682, três anos após o falecimento do pensador. Se o primeiro, monstro do mar descrito no Antigo Testamento, promete a organização do Estado, capaz de disciplinar a violência para assegurar a paz social; o segundo, monstro da terra, igualmente mencionado no texto veterotestamentário, pelo contrário, anuncia a guerra civil e o caos. Aliás, as reflexões de Hobbes foram desenvolvidas na atmosfera sufocante da Guerra Civil Inglesa, que, de 1642 a 1649, dividiu o país entre os partidários do rei Carlos I e os defensores do Parlamento, capitaneados por Oliver Cromwell. O conflito intestino somente terminou com a condenação e a posterior execução do rei Carlos I. Elaborar uma filosofia política a fim de prevenir futuros embates similares revelou-se tanto uma tarefa teórica quanto uma missão pragmática.
Leviatã, ou “monstro marinho”, aparece cinco vezes no Antigo Testamento. No livro de Jó, a menção inicial é breve. Em meio a suas tribulações, em aparência invencíveis, Jó amaldiçoa o seu nascimento, especialmente a noite em que foi concebido:
“Amaldiçoem-na aqueles que sabem
amaldiçoar o dia
e sabem instigar o Leviatã”.[2]
Nesse contexto de lamentação, o sentido é claro: “instigar o Leviatã” equivale a despertar uma força que não se controla e que somente produz sofrimento e desesperança. No capítulo 41 a exposição do monstro é minuciosa e ilumina a referência primeira:
“Você é capaz de pescar
o monstro Leviatã com um anzol
e prender a sua língua com uma corda?”[3]
Na sequência, versículo a versículo, o monstro marinho é descrito graficamente, e sempre se enfatiza seu poder físico, em tese incomparável. O desfecho do capítulo, portanto, não poderia ser outro:
“Na terra, não há ninguém
como ele
pois foi feito para nunca ter medo.
O Leviatã olha com desprezo
tudo o que é alto;
é rei sobre todos os orgulhosos”.[4]
O Leviatã surge como um poder acima dos homens e por isso imune à ação deles – “todos os orgulhosos” devem a ele se submeter. Hobbes escolheu uma imagem muito sugestiva para o título de sua obra-prima. O Estado somente alcança seu pleno propósito se for superior a qualquer cidadão, considerado individualmente. Desse modo, pode estabelecer-se uma organização com habilidade para controlar a violência, por meio do monopólio da força, administrar a justiça, evitando a reiteração dos intermináveis ciclos de vingança, e promover o bem-estar não deste ou daquele, porém de toda a população, através de políticas públicas direcionadas para tal.
“Perfeito. Mas essas funções não explicam a presença de Hobbes no Plano de Poder da dupla Macedo e Oliveira!”
Você tem razão. Mas não se precipite: leia comigo outras duas perícopes do Antigo Testamento.
Comecemos pelo Salmo 74, no qual se encontra uma fórmula muito eficaz para encarecer a primazia de Deus.
“Mas Deus é meu Rei desde a antiguidade;
ele é quem opera feitos salvadores
no meio da terra.
Tu, com o teu poder, dividiste o mar;
esmagaste sobre as águas
a cabeça dos monstros
marinhos.
Despedaçaste as cabeças
do Leviatã
e o deste por alimento
às criaturas do deserto”.[5]
Pronto! Prova inconteste, indício definitivo: só Deus poderia triunfar sobre o temido Leviatã com tamanha facilidade. Pouco importa o poderio do monstro, seu Criador dele se desfaz como se soprasse uma pluma. Por fim, no início do capítulo 27 do livro de Isaías, a tópica é a mesma, qual seja, o império de Deus se verifica no castigo que Ele impõe ao monstro “feito para nunca ter medo”:
“Naquele dia,
com a sua espada terrível,
grande e forte,
O Senhor castigará o Leviatã, serpente veloz,
o Leviatã, serpente sinuosa;
ele matará o monstro que está no mar”.[6]
Convencido agora? Leviatã é mais poderoso que todos os homens reunidos e, nesse terreno imanente, é invencível. Contudo, no plano transcendente, o monstro marinho é menos do que uma criança diante da presença de Deus. Recorde-se agora do subtítulo do livro de Hobbes: “Matéria, palavra e poder de uma república eclesiástica e civil”.
(No original: “The Matter, Form, and Power of a Commonwealth, Ecclesiastical and Civil”.)
A dupla Macedo e Oliveira sorri, saboreando o triunfo. A república é civil, sem dúvida, ou não seria suficientemente republicana. Porém, a república, em primeiro lugar, ou em última instância, é sobretudo eclesiástica, pois, assim como promete o texto veterotestamentário, Leviatã estará sempre submetido a Deus.
Hermenêutica de alfaiate que determinou a estratégia da IURD para almejar nada menos do que o poder político da nação.
A partir da próxima coluna, detalharei a trajetória teonomista do consórcio entre teologia do domínio, extrema direita e militarismo.
(Prepare-se: nitroglicerina pura. Vamos evitar a explosão?)
[1] Edir Macedo com Carlos Oliveira. Plano de Poder. Deus, os cristãos e a política. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008, p. 93-94, grifos meus.
[2] Jó 3:8. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2023, p. 855. Sigo a sugestão do historiador Cláudio Ribeiro e passo a citar esta edição.
[3] Jó 41: 1. Idem, p. 898. No Salmo 104, o ambiente marinho é reforçado: “Eis o mar vasto, imenso, / no qual se movem seres sem conta / animais pequenos e grandes. / Por ele transitam os navios / e o Leviatã que formaste / para nele brincar”. Salmo 104: 25-26. Idem, p. 1013.
[4] Jó 41: 33-34. Idem, p. 899-900.
[5] Salmo 74: 12-14. Idem, p. 978-979.
[6] Isaías 27:1. Idem, p. 1196.
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