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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Trajes, tragédias, retrocessos e avanços

Com que roupa eu vou?
25/07/2024 | 05h00

Ante de qualquer coisa, a foto que ilustra este texto é da da revista Fon Fon de 1948, com Melânia Luz, a primeira mulher negra a representar o Brasil nos Jogos Olímpicos. Uma homenagem a todas as atletas negras neste dia 25 de julho, da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Axé, manas! Boa sorte e avante!

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Em poucas horas começa o evento esportivo mais aguardado nos últimos quatro anos por milhões de pessoas ao redor do planeta apaixonadas por esportes olímpicos. Curiosamente, o tema por aqui não é sobre se Katie Ledecky, dona de 7 ouros e 10 medalhas no total, superará ou igualará o mito Michael Phelps; se Rebeca Andrade subirá novamente ao pódio ou se Simone Biles segue magistral mesmo após o super estresse dos Jogos de Tóquio. O tema que mobiliza o país há vários dias e ainda agora, faltando horas para que comecem os Jogos, é: roupa.

Desde 1930 o samba de Noel Rosa pergunta: “Com que roupa? Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?”. Pois bem, o Brasil vai de chinelo. As atletas muçulmanas francesas querem ir de Hijab. Os e as nadadoras que tiverem cabelos crespos e volumosos poderão, finalmente, ir com toucas que os comportem.

Cada caso citado sobre os “looks” olímpicos nada tem a ver com tendências de moda, mundo fashion ou coisas afins. Estes casos são sobre autoestima, intolerância, racismo, xenofobia, enfim… política. Como, aliás, é tudo o que se refere a este evento, mesmo que os organismos esportivos, a mídia e até mesmo o Comitê Olímpico Internacional insistam em colocar outras chaves e lentes em tudo isso.

O Brasil vai de chinelo

O Brasil tem 104 anos de história na competição e vai agora para a sua 25ª participação nos Jogos Olímpicos da era moderna, que tem 128 anos desde a sua primeira edição, em 1896. Não é preciso dizer que durante longas décadas apenas homens participavam e que o evento envolvia um alto grau de elitismo. Haja visto que o criador era um nobre francês, um barão.

No Brasil não foi muito diferente, embora alguns atletas tenham conseguido furar a bolha olímpica feita de brancos herdeiros. O uniforme, este item tão marcante do pertencimento de grupo, já foi arma de exclusão e orgulho na mesma medida. Aída dos Santos, única mulher da delegação de 1964 e quarto lugar no atletismo, não recebeu nem um par de tênis adequado para treinar e competir, quanto mais uniforme de desfile. Ela não era bem-vinda. Ela era a face que o Brasil não queria pra si. Uniforme do país? Até parece!

Ao longo do tempo a organização se sofisticou e a contratação de estilistas, anúncio dos diversos modelos usados pelos atletas viraram rituais à parte no já ritualístico ingresso no time olímpico. No entanto, nem a precariedade dos primeiros tempos e menos ainda a organização dos dias atuais, conseguem esconder as fragilidades da atividade esportiva no país e como este momento de se apresentar ao mundo como delegação, como grupo forte e orgulhoso de si, ainda sofre abalos.

Talvez a enxurrada de críticas ao traje de desfile se deva ao fato de que boa parte do país esteja mudando o modo como se enxerga e como quer ser visto frente às nações do mundo. Quem sabe esteja chegando a famosa e tão necessária autoestima? O uniforme de 2024 não sustenta o belo trabalho feito pelas bordadeiras nordestinas que, certamente colocaram amor e dedicação no serviço, mas, excetuando o trabalho artesanal, todo o resto parece dizer de uma certa diminuição do momento que é o sonho de milhões de atletas mundo afora. Pisar naquele desfile foi e será sempre para muito poucos.  Talvez os atletas (e também a população brasileira) quisessem ver o Brasil lindamente trajado para uma festa de gala … mas vai pisar de chinelo.

As atletas muçulmanas francesas querem ir de Hijab

A França, casa da maioria dos muçulmanos que estão na Europa e que acabou de sair de um processo eleitoral complexo, com a extrema direita destilando ódio xenófobo a cada esquina, está diante de um dilema: o Hijab. Aquele manto que cobre a cabeça das muçulmanas passou a ser uma questão religiosa, política, de identidade nacional e olímpica. O que fazer com as atletas que o usam?

Em um primeiro momento, a solução óbvia sempre pensada por países colonizadores: proibir e punir. Acontece que não é assim tão simples. O símbolo que leva o imaginário para fora das fronteiras francesas, conduz a uma guerra começada há menos de um ano, mas que já matou mais 38 mil palestinos e expulsou de seu território mais de 2,3 milhões de pessoas. O lenço na cabeça, neste momento, envia uma mensagem ao mundo.

O governo francês e as autoridades olímpicas disseram na última quarta-feira que estão buscando soluções para permitir que a corredora francesa muçulmana Sounkamba Sylla, atleta do revezamento de 400 metros, consiga usar seu hijab na cerimônia de abertura dos Jogos de Paris, ao mesmo tempo em que as leis do país, que vetam o hijab em diversas situações, sejam cumpridas.

Segunda-feira Sylla postou no instagram: “Você é selecionado para os Jogos Olímpicos, organizados no seu país, mas não pode participar da cerimônia de abertura por usar um lenço no cabelo”.

Não é questão de moda e tão pouco de isenção religiosa, como argumentam as autoridades. Não é um detalhe. É o uniforme francês e todo o simbólico que isso carrega. Sylla sabe, as autoridades sabem, o mundo sabe.

Quem tiver cabelos crespos e volumosos poderá usar toucas que os comportem

Esta polêmica das toucas adaptadas para cabelos crespos andou rondando os Jogos passados, em Tokyo, e algumas competições de natação recentes. Ela entra naquele chatíssimo debate há alguns anos sobre os trajes de corpo inteiro de natação e outras “modernidades” para além das sungas e maiôs convencionais, que vestiam os atletas até o início dos anos 2000, pois tudo o que possa conferir alguma vantagem desigual na competição é sempre analisado com lupa, mas… qual vantagem adicional pode existir em uma touca maior?

Enfim, questões técnicas à parte, o utensílio parece incomodar não por ele mesmo, mas pelas cabeças que o recheiam. Esta colunista acompanhou seis edições de Jogos Olímpicos, mais que uma dezena de Jogos Pan-Americanos e um sem-número de Campeonatos Mundiais de Esportes Aquáticos.

Tranquilamente passo este texto para a primeira pessoa do singular, pois contei nos dedos os nadadores e nadadoras negras que vi subindo ao pódio nestes esportes. Quem sabe isto, a abissal exclusão dentro d’água em um mundo em colapso climático e que precisa saber nadar, entre no foco da atenção dos dirigentes agora que pararam de discutir sobre as toucas que cobrem as cabeças. Enfim, algum avanço.

 

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