No meio do redemoinho
Hora de concluir a série de artigos dedicada à análise dos princípios da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). O próximo passo será o estudo da estratégia desenvolvida para a tomada do poder político, a fim de impor, pouco a pouco, uma ordem social teonomista.
Contudo, ainda devo identificar o motor, digamos, doutrinário que levou à difusão internacional da IURD, forjando um autêntico império religioso, empresarial e político.
(Motor “doutrinário”, eu disse. Ninguém poderá negar minha generosidade hermenêutica.)
Mantenho meu modesto método, qual seja, leio cuidadosamente os livros do Bispo Edir Macedo. Desta vez, vamos abrir “Como vencer suas guerras pela fé”. Lançado em 2019, o subtítulo insiste na atmosfera bélica: Descubra como enfrentar as batalhas do dia a dia.
De imediato, vem à tona o elemento central da pregação de Edir Macedo: o caráter agônico de sua visão do mundo. Não há trégua possível: uma luta constante de vida e morte ocupa o primeiro plano. O leitor tem poucos motivos para hesitar ao encontrar um exemplar numa livraria.
Criação de Willian Souza, essa imagem é a mais completa tradução da mentalidade do Bispo Macedo.
Vejamos: a imagem do soldado no segundo mais intenso do combate, os olhos concentrados em fúria, a boca escancarada, animalescamente mostrando os dentes em postura agressiva, o rosto crispado em tensão máxima. Não surpreende que a palavra “fé”, seja mero apêndice dos termos verdadeiramente protagonistas, “guerras” e “batalhas”. Centralidade anunciada também na escolha sintomática do plural. Não se trata de conflito isolado, que se resolva numa única ofensiva, porém de um estado de hostilidade permanente, já que o adversário está à espreita todo o tempo.
(No meio do redemoinho, pois.)
O Inimigo
Basta abrir a primeira página da “Introdução” para compreender o mantra que se repete ao logo de 261 páginas, numa obsessão aparentemente sem remédio, tampouco paliativo:
“A guerra pela Salvação da alma é necessária, pois visa nos posicionar diante da grande batalha espiritual que todos travam neste mundo. Em outras palavras, ela tem por objetivo nos fazer escolher de que lado queremos estar, do bem ou do mal, para que, a partir dessa escolha, desfrutemos ou soframos com o resultado dessa peleja. Estejamos conscientes ou não das realidades espirituais que vigoram e determinam tudo o que acontece no nosso plano físico, a nossa vida é completamente afetada por esse conflito interior. (…) Então, se ignorarmos o fato de que vivemos em um conflito que exige embates diários e o revestimento das poderosas armas do Altíssimo, certamente seremos prejudicados por toda a eternidade”.
E ainda não saímos da primeira página! Dificilmente um manual de guerra conteria em poucas linhas uma variação tão rica de sinônimos: guerra, batalha espiritual, peleja, conflito interior, conflito, embates diários. No entanto, como sustentar tal concepção da existência sem definir um oponente à altura do desafio cotidiano? Certamente, estamos falando de um antagonista formidável, capaz de triunfar a qualquer momento, diante do menor descuido.
A resposta também se encontra na abertura do livro:
“Contudo, para que possamos um dia receber das Mãos do Senhor Jesus a coroa da vida, por termos vencido essa guerra, precisamos lembrar, a todo instante, que enfrentamos inimigos invisíveis, cruéis e hábeis na dissimulação e no engano”. [1]
Como a sutileza não é exatamente um traço da personalidade e sobretudo da escrita do Bispo Macedo, viramos a página e damos de cara com o Inimigo:
“Nascemos em um mundo que já estava em guerra. Digo isso porque, antes de Adão e Eva serem criados, Deus já tinha um arqui-inimigo que se opunha aos Seus propósitos. Não podemos, então, desconsiderar esse fato e levar a vida espiritual de maneira superficial, fria e indiferente. (…) O desfecho final dessa peleja será quando, finalmente, Satanás for aprisionado no lago de fogo e enxofre para sempre”. [2]
A ousadia dessa exegese selvagem não deve ser obnubilada pela caricatura potencial da descrição. Edir Macedo projeta num instante pré-adâmico a onipresença do eterno espírito pelejador. Isto é, antes da criação do homem e da mulher, Satanás — claro está, não poderia ser outro — tornou o mundo o palco perfeito para uma confrontação imorredoura. Nesse cenário, como reagir?
A doutrina da IURD acredita oferecer o antídoto mais eficiente:
“O diabo não está brincando de ceifar vidas ou de enganar os justos. Ele começou a agir no Éden; portanto, é astuto e bastante sagaz nisso. Veja, então, que, antes mesmo de você nascer, o diabo já trabalhava incansavelmente para derrubar os filhos de Deus. Satanás não descansa, não dorme, mas se esforça para fazer o cristão cochilar na fé e assim o apanhar.
Por isso, neste livro, vou expor os disfarces de Satanás, suas artimanhas de engano, bem como sua maior arma: a mentira. Faço isso porque não há como combater inimigos que não conhecemos. Se estamos no meio da batalha, precisamos saber bem contra quem lutamos, além do seu modo de agir, das suas ideias e dos seus conceitos. Porque, na guerra pela Salvação da alma, lutamos pelo nosso destino eterno”. [3]
(Você já se habitou às longas citações nos meus textos, não é?)
O teatro está montado. Infelizmente, Edir Macedo não parece ter lido “Dom Camurro” — o mais provável é que Machado de Assis não faça parte de suas leituras habituais. Por isso, deve ignorar a bem-humorada teoria do velho tenor italiano Marcolino, que inventou uma improvável conciliação estética entre Deus e o Diabo na terra de Bento Santiago. Em lugar de pensar numa ópera, ainda que dissonante, Macedo somente tem ouvidos para os ruídos da guerra, que, aliás, contagiam literalmente os capítulos do livro. Consulte, por exemplo, o capítulo 3, “Como o diabo age hoje”; e o próximo, “Quando o corpo se transforma em morada de demônios” (sempre o recurso ao plural!); salte para o capítulo 11, “O diabo e o púlpito”; e o seguinte, “As armas de nossa guerra”.
Afinidades eletivas
Tratado involuntário de demonologia, Como vencer suas guerras pela fé professa um maniqueísmo fundamentalista estruturador de cada página do livro. Ao mesmo tempo, esse maniqueísmo esclarece o vínculo que reúne num abraço de ferro Teologia do Domínio, extrema direita e militarismo.
Ora, se o que está em jogo é a refrega do Bem contra o Mal, se o horizonte se resume ao binarismo cego, então a intolerância é a marca d’água que define a incapacidade de lidar com qualquer forma de alteridade.
(Plano de Poder sinônimo de projeto político autoritário.)
[1] Edir Macedo. Como vencer suas guerras pela fé. Descubra como enfrentar as batalhas do dia a dia. São Paulo: UNIPRO, 2019, p. 9, grifos meus.
[2] Idem, p. 10.
[3] Idem, p. 11-12.
SAIBA MAIS:
Plano de Poder: Teologia do Domínio e Igreja Universal – I
Plano de Poder: Teologia do Domínio e Igreja Universal – II
Plano de Poder: Teologia do Domínio e Igreja Universal – III
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