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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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Tempestade perfeita: o encontro das potestades – I

Nomeação para o STF de um “ministro terrivelmente evangélico” não foi um ato isolado
03/08/2024 | 09h41

Uma hipótese

Encontra-se em curso no Brasil, há pelo menos duas décadas, um projeto de poder que se tornou agudo, agudíssimo, nos últimos anos devido à convergência, não necessariamente planejada, entre três elementos: Teologia do Domínio, extrema direita e militarismo.

Essa hipótese exige que se pergunte pelo vínculo entre os três fatores.

Resposta inicial: esses elementos, cada um a seu modo, revelam-se incapazes de lidar com a alteridade. De fato, metodicamente recusam o que não seja espelho e, no limite, operam no sentido de promover a eliminação simbólica e até mesmo física do outro.

Posso dar um passo além e sugerir que o militarismo, a extrema direita e a Teologia do Domínio compartilham uma pulsão fundamentalista, cujo gesto definidor é a intolerância com qualquer manifestação de diferença.

Daí, esse plano de poder não pode ser senão estruturalmente autoritário.

Esclarecido o andaime conceitual, venho ao aspecto propriamente histórico.

Aperfeiçoo a hipótese inicial: assistimos, no cenário atual da vida brasileira, a reunião de três fatores que há boas décadas caminham em paralelo — e aqui as paralelas descobriram uma forma inesperada de realizar o improvável encontro.

(E as paralelas dos pneus na n’água das ruas.)

Um passo atrás.

O elo entre extrema direita e militarismo é óbvio; salta aos olhos, até para os que desejam mantê-los bem fechados. Na história (quase) recente da política brasileira é precisamente a memória mal resolvida da ditadura militar, iniciada com golpe em abril de 1964, e somente encerrada em 1985, que favorece o consórcio. O revisionismo histórico foi fundamental no resgate do militarismo, não mais como período sombrio e autoritário, os anos de chumbo, porém como alternativa aceitável e, porque não dizê-lo, até mesmo desejável.

Associação inesperada, e por isso ainda mais forte, a Teologia do Domínio, de igual modo, oferece o modelo da teonomia não mais como uma ordem social fundamentalista e autoritária, o “Conto da Aia” nos trópicos entristecidos, porém como alternativa aceitável e, porque não dizê-lo, até mesmo desejável.

Ao tratar da Teologia do Domínio impõe-se o estabelecimento de uma cronologia inicial.

Vamos lá.

Historicamente, as denominações evangélicas apostaram na separação entre política e religião; afinal, no instante anterior à proclamação de Martinho Lutero, a Igreja Católica, instituição tanto religiosa quanto política, em muitos casos, essencialmente política, lançava uma sombra ameaçadora sobre o próprio Estado. Não é preciso um recuo cronológico abissal; até há poucas décadas os evangélicos — sempre ressalvando a pluralidade subjacente à noção — mantinham-se fiéis ao protestantismo histórico, ou seja, mantiveram-se distantes da política. A leitura do “Novo Testamento” autorizava a precaução.

Recordemos o momento dramático do interrogatório de Pilatos, tal como retratado no “Evangelho de João”. Um pouco antes de escutar a pergunta irônica e desconcertante do governador da Judeia, “O que é a verdade”, Jesus esclareceu à autoridade romana o sentido de sua missão:

“O meu Reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas agora o meu Reino não é daqui”. [1]

Passagem citada com frequência e que contribuiu para definir uma posição sólida de rejeição da política. No “Evangelho de Mateus” a distinção é ainda mais cristalina e possui tal força que se tornou parte da linguagem proverbial em muitas culturas. Outra vez, os letrados e os fariseus buscam deixar a Jesus em situações constrangedoras com suas perguntas maliciosas, a fim de gerar conflitos teológicos ou políticos.

“Assim sendo, diga-nos: o que o senhor acha: é lícito o pagar imposto a César ou não?

Mas Jesus, percebendo a maldade deles, respondeu:

— Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à prova? Mostrem-me a moeda do imposto.

Trouxeram-lhe um denário. E Jesus lhes perguntou:

— De quem é esta figura e esta inscrição?

Eles responderam:

— De César

Então Jesus lhes disse:

— Deem, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. [2]

É possível identificar um ponto de ruptura? Um movimento coordenado que teria levado denominações evangélicas rumo a um projeto político, o que implica mudar radicalmente a posição dominante nos últimos séculos?

A resposta envolve latitudes diversas: Brasil e Estados Unidos.

No final da década de 1970, como uma reação radical à presidência de Jimmy Carter, emergiu como uma influência efetiva a New Christian Right, que apoiou a campanha de Ronald Reagan: a história é longa e culminou na autêntica adoração a um político tão profano quanto Donald J. Trump.

(Nesta coluna, apenas tocarei ligeiramente no tema, que será objeto dos próximos textos.)

Jimmy Carter foi um batista histórico, um cristão fervoroso. Na Casa Branca, interrompia o trabalho cm regularidade para orar. Como entender que um grupo de evangélicos tenha questionado o caráter laico da República para derrotá-lo?

A razão surpreende, mas descortina o horizonte que fundamenta a Teologia do Domínio: embora batista, e reconhecido como um homem profundamente religioso, Carter governou com base na ideia-chave de laicidade. Em palavras diretas, sua administração não avançou um centímetro sequer na direção de uma ordem social teonomista. Daí, o apoio decidido ao nome de Ronald Reagan, que se comprometeu com esse propósito.

E no Brasil?

De igual sorte, há um marco histórico: trata-se da Assembleia Nacional Constituinte, instalada em fevereiro de 1987. Nessa ocasião, alguns grupos evangélicos começaram a se organizar politicamente, a fim de intervir na definição da ordenação jurídica da nação.

Há, inclusive, uma instituição que liderou o projeto nos seus primórdios: a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), criada em 1977. Nas últimas décadas, o fenômeno só cresceu e se adensou no Congresso, com a estruturação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2003 e, a cada eleição, mais numerosa, isto é, mais poderosa. Vale dizer, capaz e sobretudo disposta a alterar o ordenamento jurídico nacional em direção a uma sociedade teonomista.

A onda se avolumou com a fundação em novembro de 2012 da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), cujo propósito declarado é colaborar para a imposição de uma teonomia tropical. Nesse sentido, a nomeação para o Supremo Tribunal Federal de um “ministro terrivelmente evangélico” não foi um ato isolado, fruto de um presidente excêntrico, porém o ponto culminante de um longo processo histórico. O absurdo e infame projeto de lei 1904 caminha nessa mesma estrada.

(Como veremos nas próximas colunas.)

 

[1] João 18:30. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2023, p. 1948.
[2] Mateus 22:17-21. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Op. cit., p. 1748.

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