Por Chico Otavio
Um clima de indignação e luto tomava conta do Rio de Janeiro, no fim de março de 2018, após as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes. Ao encontrar dois colegas da porta na chefia de Polícia Civil, na Rua da Relação, Centro da cidade, o delegado Marcus Amim, então lotado na 27ª DP (Vicente de Carvalho, zona norte do Rio de Janeiro), abriu uma das mãos e, contando os dedos, afirmou que só cinco pistoleiros poderiam ter cometido aquele tipo de crime: tenente João André, Batoré, major Ronald, capitão Adriano e Lessa. Mas João estava morto, Batoré se envolvera com o tráfico na Ilha do Governador e, de Ronald, pouco se sabia. Restavam Adriano e Lessa.
Para resolver o caso, recomendou Amim, bastaria recuperar as imagens de rua dos condomínios e imediações de ambos, no dia do crime, pois eles tinham o hábito de sair para as “empreitadas” da própria casa (Adriano, do Condomínio Floresta, em Rio das Pedras, e Lessa, do Condomínio Vivendas da Barra, na avenida Lúcio Costa, ou do Quebra-Mar, ambos na Barra da Tijuca). Nos corredores das delegacias, a prudência evitava menções aos nomes de ambos, mas todos sabiam o modo de agir dos dois mais perigosos pistoleiros da cidade.
Os interlocutores de Amim eram os delegados Giniton Lages, titular da Delegacia de Homicídios da Capital (DH), e Luís Otavio Franco, da mesma unidade. Ouviram quietos e se despediram. Giniton, desde 15 de março, dia seguinte ao crime, era o responsável pelo inquérito. Ignorou a dica do colega e seguiu uma pista falsa por sete meses, até que as imagens do Cobalt prata, o carro dos assassinos, passando pelo Quebra-Mar, foram finalmente juntadas ao processo e conduziram o inquérito aos verdadeiros autores, apesar das perdas provocadas pelo lapso temporal.
A conversa de Amim com Giniton e Luís Otavio compõe a lista de provas juntadas pela Polícia Federal em relatório de 90 páginas encaminhado nesta sexta-feira (9), ao Supremo Tribunal Federal (STF). A conclusão do documento é que Giniton e seu braço direito, o comissário de Polícia Marco Antônio de Barros Pinto, o Marquinho, acobertados pelo então chefe da Polícia Civil do Rio, delegado Rivaldo Barbosa, agiram deliberadamente para obstruir as investigações sobre os reais culpados.
A dupla de executores, como eles próprios confessaram, partiu no Cobalt clonado de um ponto nas proximidades do condomínio Vivendas da Barra, seguindo pelo Quebra-Mar até o Alto da Boa Vista. De lá, passou pela Tijuca antes de chegar ao Centro, onde estavam as vítimas. Mas a DH, na época, alegou que só conseguiu colher as imagens do Cobalt no Itanhangá, subida do Alto da Boa Vista.
Denúncia do caso Marielle no Supremo
A PF espera que as conclusões do relatório, produzido no último mês, respaldem a Procuradoria-Geral da República (PGR) em eventual denúncia contra os três policiais civis do Rio por crimes de obstrução e de organização criminosa. Os investigadores federais se convenceram de que pistas como a rota de partida dos criminosos, registradas em imagens de câmeras de trânsito e de vigilância recolhida na ocasião, foram ignoradas porque, desde o começo, o objetivo dos responsáveis pelo inquérito do Caso Marielle era conduzir as investigações na direção oposta aos verdadeiros criminosos.
A Polícia Civil queimou quase sete meses de investigação apostando em uma linha equivocada, plantada por um falso delator, o então PM Rodrigo Ferreira, conhecido como Ferreirinha. Ele apontou o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, e o vereador Marcello Siciliano como os responsáveis pela ordem do assassinato. Na época, Ferreirinha foi levado à Polícia Civil pelo delegado Rivaldo Barbosa.
Orlando Curicica, em entrevista do jornal O Globo, em 20 de setembro de 2018, e, posteriormente, ratificada em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), negou a participação no crime e denunciou que estaria sendo chantageado pela DH para assinar uma delação premiada. Na mesma entrevista, contou que a DH era conhecida por receber propina para acobertar os crimes praticados pela milícia e pela contravenção.
Essas revelações obrigaram a DH a mudar o rumo das investigações.
Fuga desprezada
O relatório da PF sobre a obstrução também concluiu que a rota de fuga dos dois executores, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, foi igualmente desprezada. O Centro de Convenções SulAmérica, na Avenida Paulo de Frontin 1, na Cidade Nova, por onde o Cobalt passou logo após o atentado, contava à época com seis câmeras de segurança distribuídas pela fachada. Mas o emissário da DH enviado ao local só recolheu a imagem do Cobalt em apenas uma delas — a primeira a captar imagens de veículos que passam em frente ao prédio — e deixou de lado as outras cinco câmeras.
No trecho onde ficava o monitor que gravou o Cobalt, por volta de 21h30 daquela quarta-feira,14 de março, são os carros são obrigados a virar à direita. As imagens dos outros cinco monitores, na sequência, poderiam revelar se o carro de Lessa e Queiroz seguiria para o Centro da cidade ou iria para a Leopoldina, na Zona Norte, as duas únicas opções dos motoristas que passam por ali.
Se as imagens tivessem revelado a escolha dos matadores, bastava apenas recolher imagens de câmeras dos prováveis caminhos a seguir.
Como Lessa e Queiróz contaram à PF, recentemente, em suas delações premiadas, o Cobalt tomou a direção da Leopoldina. Seguiu pela Avenida Francisco Bicalho, de onde pegou a Avenida Brasil, rumo à casa da mãe do atirador, no Méier. “Se tivessem tomado essa óbvia providência, o rastreamento levaria a polícia à porta da mãe do assassino”, disse ao ICL Notícias um agente federal.
Da Avenida Brasil, o carro pegou a Linha Amarela, sentido Barra da Tijuca, e entrou na saída para o Méier, na zona norte do Rio. Quinze minutos depois do crime, Lessa e Élcio chegaram ao destino e deixaram o Cobalt prata estacionado na rua.
Giniton e Marquinhos já estavam na mira da PF desde a investigação que apontou os irmãos Domingos (conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, TCE-RJ) e Chiquinho Brazão (deputado federal) como mandantes do duplo homicídio. Os federais sustentaram que os dois tinham um acerto com Rivaldo Barbosa para boicotar a investigação da DH. O esquema, definido na delação de Ronnie Lessa como “virar o caminhão para o outro lado”, consistiu em forjar provas e creditar falsos testemunhos para acusar o então vereador Marcelo Siciliano como mandante dos crimes.
O objetivo da PF, no relatório sobre os mandantes, foi sustentar as imputações contra Domingos, Chiquinho, Rivaldo e o major da PM Ronald Alves de Paula pelos homicídios de Marielle e Anderson. O ministro Alexandre de Morais, há cerca de um mês, havia solicitado uma investigação específica sobre o papel de Giniton e Marquinhos na obstrução. Porém, como medida preventiva, o ministro afastou ambos da Polícia Civil e os obrigou a usar tornozeleiras eletrônicas desde 24 de março.
Marquinhos acusado de extorsão
O nome de Marquinhos, braço-direito, foi mencionado por Élcio em outubro do ano passado, durante audiência de instrução e julgamento de Maxwell Simões Corrêa, o Suel, também acusado de envolvimento nos crimes. Queiroz acusou o policial civil de extorquir Ronnie Lessa para atrapalhar as investigações do caso. No depoimento, o ex-PM disse que “na Divisão de Homicídios, o Ronnie me falou que o Marquinhos cobrou dinheiro dele para não investigar. Não sei se você sabe, doutor, mas só 3% dos homicídios são esclarecidos. Como vou confiar numa polícia dessas?”.
No âmbito da chamada “investigação da investigação”, conduzida também pela PF, em 2019, com o objetivo de apurar a obstrução do inquérito, foram encontradas mensagens entre Ferrerinha e Marquinhos, da DH, na qual o policial orientava a testemunha para “corrigir falhas e fazer ajustes em seus depoimentos, em vez de tomá-las como alerta e buscar auditar a versão de forma escorreita”, como concluiu o inquérito, à época.
Para a Polícia Federal, embora negue, Giniton teria seguido a sugestão do colega Marcus Amim (que atualmente é secretário de Polícia Civil), de recolher as imagens do Quebra Mar (ponto de passagem de Ronnie Lessa) e do Condomínio Floresta (Adriano), mas só tornou o conteúdo público depois que a linha de investigação falsa entrou em um beco sem saída.
O novo relatório, enviado nesta sexta-feira ao STF, também incluiu Rivaldo na trama. Os federais estão convencidos de que, ao nomear Giniton para a chefia da DH Capital no dia seguinte ao crime, o então chefe da Polícia pretendia montar uma rede de proteção para os criminosos. Caberá ao vice-procurador-geral Hindenburgo Chateaubriand Pereira Diniz Filho, que atua no caso, avaliar se há elementos suficientes na investigação para sustentar uma denúncia contra os três policiais.
SAIBA MAIS:
Marielle, milícias e mais: relatórios de inteligência da intervenção militar no RJ sumiram
Deixe um comentário