Nos idos do ano de 2002, quando eu era um jovem estudante de História na FFLCH-USP, um saudoso professor e grande narrador, István Jancsó, costumava dizer que a História da humanidade poderia ser resumida entre aqueles que cobram impostos e aqueles que pagam. Muitos (quase todos) foram os conflitos e guerras que se deram exatamente em torno desta grande questão. Impostos! Impostos e a morte, as únicas certezas de nossa tragicômica existência. Contudo, ouso aqui acrescentar, aos impostos e à morte, uma outra recorrência da condição humana: os monumentos.
Do latim “monere” – que significa “advertir”, “lembrar” – o termo se refere, originalmente, a todo tipo de edificação que faz um indivíduo, ou uma comunidade, tocar uma memória viva, ou seja, rememorar seus afetos, acontecimentos, tradições, rituais, visões de mundo e crenças. Faz o passado se tornar presente. Digamos que boa parte do desenvolvimento da humanidade passou por dominar a vida natural e material do planeta. E que para justificar nossa existência e angústia nesse mundo desconhecido e amedrontador, procuramos construir objetos que dessem conta de projetar nossa dor no mundo e do mundo em extensões mágicas de nossa mente e corpo, de nossas formas de encarar e interpretar a realidade.
Aí está a gênese de nossa arte, arquitetura (arte inescapável) e de todos os objetos de cultura material monumentais que desde há milhares de anos fomos deixando em nossas andanças pela superfície da Terra. Os monumentos – de Stonehenge na Inglaterra aos túmulos dos soldados desconhecidos das guerras do século XX – configuram a segurança, o conforto espiritual e material diante da provisoriedade e instabilidade do mundo. Diante deles e com eles, tentamos afastar o medo da morte e da aniquilação.
Foi exatamente por conta da ameaça constante de aniquilação que os palestinos da cidade de Jenin, na Cisjordânia, construíram em 2003 um monumento/escultura conhecido como “O Cavalo de Jenin” ou “Al-Hissan”, “o Cavalo”, em árabe. Concebido pelo artista alemão Thomas Kilpper, conhecido por obras e monumentos que denunciam todo tipo de opressão política, o “Cavalo de Jenin” foi montado com restos de escombros de casas e de sucatas de carros e ambulâncias destruídos pelo exército israelense num ataque brutal ao campo de refugiados de Jenin em 2002. Centenas de palestinos morreram na então “Batalha de Jenin”, em mais um dos capítulos da guerra do Estado de Israel contra o povo da Palestina.
No intuito de ressignificar sua dor e lembrar sua luta por sobrevivência, 12 jovens palestinos e Thomas Kilpper produziram a escultura de mais de 5 metros. Na lateral do cavalo, um fragmento da porta de uma ambulância diz “Sociedade do Crescente Vermelho”, nome de uma empresa de emergência médica. Isso porque no ataque de 2002, uma bomba israelense atingiu a ambulância e matou o médico Khalil Suleiman, que estava tentando retirar uma menina ferida do campo de refugiados.
O cavalo, na cultura islâmica, representa força, lealdade, agilidade e o meio de transporte material e espiritual do povo de Allah. Durante 20 anos, numa rotatória próxima da entrada do Campo de Refugiados de Jenin, a estátua-monumento advertia e lembrava aos palestinos sua resistência: “Libertem a Palestina!” Porém, no último dia 29 de outubro (como bem demonstrou nossa intrépida Heloisa Villela no ICL-Notícias), na escalada interminável das Forças de Israel contra os territórios palestinos, os soldados israelenses destruíram a estátua e removeram, com tratores, os escombros para locais onde os palestinos de Jenin não podem mais acessá-los.
Numa guerra de aniquilação, não basta vencer os inimigos, é preciso destruir suas casas, salgar suas terras, destruir seus vestígios de luta e resistência, erradicar suas lembranças, em suma, extirpar seu direito à memória e, portanto, o direito de existir como História. Não há hoje na chamada “Terra Santa” uma história da civilização, mas sim uma história da monumentalização da barbárie, mas desta vez o monumento à barbárie não é uma estátua, mas o trator dos soldados israelenses, que impunemente e reiteradamente deixa em ruínas os sonhos de liberdade da Palestina.
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