Comecei a ver aí, em Avaré, e terminei aqui, na pontinha oeste da Europa. Foram três semanas em que pudemos olhar para as televisões sem náusea. O melhor da humanidade entrou em palco e o mundo transformou-se subitamente em movimento e alegria. Para onde quer que olhássemos víamos elas a fazer acrobacias e eles a correr e a nadar — e ambos a jogar, e a jogar, e a jogar. Tudo ali era graça e beleza. No final, cumprimentavam-se uns aos outros e os vencidos aplaudiam os vencedores. O fair play é uma ideia revolucionária.
A Europa pode já não ser “a parte preciosa do universo”, mas a França deu tudo o que tinha para oferecer ao mundo que ama um espetáculo à altura da sua própria memória histórica. A cerimônia de abertura foi comovente, a ideia de centrar os jogos no rio Sena foi inteligente e até a revelação do atleta-herói Léon Marchand respondeu à exigência da circunstância. Bravo.
No meio daquilo tudo surge o Brasil. Vinte medalhas, muitos campeões e uma cara nova. Um rosto diferente. De onde veio este rosto? Até aqui os negros destacavam-se nos desportos de habilidade, não nas disciplinas técnicas que exigem muito treino, muita disciplina e — Deus nos perdoe a heresia da palavra — mérito, muito mérito. A ginástica era assim como o piano, o francês e o ballet. Deixou de ser? Seja como for, essa cara do Brasil parecia fora de cena.
Na verdade, tudo aquilo parecia coisa de guião. Tudo aquilo parecia ter sido previamente pensado e encenado para contar uma história extraordinária. Primeiro, veio a magnífica Biles, que regressa aos Jogos fazendo lembrar pássaros em alto voo. Atrás, um pouco atrás, vai surgindo um outro rosto negro que, no final, bem lá no final, tem uma explosão de excelência e muda o roteiro — a sucessora sobe ao pódio e as rivais fazem uma vênia, sorrindo. Ela, segura de si, eleva aos céus os braços vitoriosos e sorri. Sorri muito, e o mundo sorri com ela. Ainda por cima é bonita. Há ali qualquer coisa de “haute couture”, como dizia Vinicius. Mas o que mais me impressionou não foi a beleza. O que verdadeiramente me impressionou é que ali, naquela fotografia, naquele momento, não havia nem falsa humildade, nem falsa modéstia, nem complexo de vira-lata. Tudo naquela campeã improvável respirava confiança e orgulho. E até uma certa hipótese de desafio — este é o meu momento e quero exibi-lo com orgulho perante o mundo que observa. A primeira fidelidade devemo-la a nós próprios, a ninguém mais. Até isso me comoveu.
E pronto, no final ali estavam ambas, Biles, a consagrada Biles, e a sucessora Rebeca — ambas negras, ambas sorrindo e ambas fazendo seu “trabalho de negra”. Ali, naquele ar vitorioso e confiante reconheci o país onde alguém disse que “Africa vive ainda o seu exílio”. Um país irradiante. Um país a levantar voo. Um país que fez lembrar a razão pela qual lhe chamaram o país do futuro. Aquela fotografia muda um país. Saravá.
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