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José Sócrates

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O governo de Assembleia

Aquelas emendas não existem em regimes parlamentares, nem em regimes presidenciais, nem em semipresidenciais
20/08/2024 | 16h29

Aquela ação de inconstitucionalidade e aquela sentença do Supremo foram uma coisa boa para o Brasil. Quem esteja de boa-fé reconhece facilmente que as emendas orçamentárias impositivas não podiam continuar. Não, não se trata de discutir o regime político — aquelas emendas não existem em regimes parlamentares, nem em regimes presidenciais, nem em semipresidenciais. Pura e simplesmente, não existem em lugar nenhum do mundo. As emendas parlamentares comprometem a qualidade do investimento público, retiram racionalidade econômica ao orçamento do Estado e põem em causa uma visão integrada do desenvolvimento do país. Mas talvez o pior sejam as consequências que têm na responsabilidade política: os deputados escolhem a despesa, mas não respondem pelas consequências da sua escolha. No fundo, como referiram dois dos autores da ação, Rafael Valim e Walfrido Warde, a decisão judicial veio restaurar a governabilidade — e governabilidade é isto: o parlamento aprova o orçamento, o governo executa-o. Não o contrário.

As emendas orçamentárias impositivas estavam a transformar o Brasil numa espécie de “Governo de Assembleia”, qualquer coisa aparentada com aqueles períodos revolucionários onde a ação governativa é diretamente ditada pelos caprichos e pelos impulsos do debate parlamentar. A moderna teoria da democracia representativa impõe uma separação de poderes, uma distância de reflexão entre a ação governamental e os humores dos parlamentares. A boa governação impõe um executivo que se encarregue da ação e um legislativo que dá legitimidade à ação, elaborando as leis. E depois, ainda por cima, temos o caráter secreto das emendas que não permitia saber quem é responsável pelo quê. As emendas não ameaçavam apenas a racionalidade da governação, mas também retiravam à política democrática a dimensão de responsabilização: quem toma as decisões deve responder por elas nas eleições.

Nada disto poderia continuar. As emendas estavam a minar a democracia e a boa governação. E a consciência dessa impossibilidade era tão aguda, a urgência na revisão destes procedimentos era tão evidente, que a decisão do Supremo foi recebida com o aplauso e o alívio de quase todos os setores políticos. Não há dúvida: o tribunal prestou um inestimável serviço à política brasileira.

Um último ponto. Não sei se repararam numa coisa interessantíssima: a balbúrdia orçamental foi promovida pela direita e a ordem orçamental foi reposta pela esquerda. Não é extraordinário? Não é espantoso que aqueles que nunca perdem uma oportunidade para exprimirem a sua preocupação com a saúde das contas públicas sejam exatamente aqueles que incentivaram, apoiaram ou conviveram sem crítica com o maior perigo institucional criado contra o orçamento público nacional? A cumplicidade da direita democrática com estas emendas secretas não será esquecida e o preço de tudo isto será pago em futuras eleições. Como antes pagou o preço da governação Bolsonaro. O fim das emendas é uma espécie de última cena desse teatro do absurdo que resultou da cumplicidade da direita brasileira com a extrema-direita. Por favor, não insistam. No futuro, por favor, pensem melhor.

 

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