A cena é conhecida de muitos: durante os períodos de seca do Nordeste brasileiro, famílias e rebanhos se alimentam de uma espécie de caldo a partir da palma, um cacto abundante na caatinga, em todas as refeições, por ser um dos poucos alimentos disponíveis mesmo quando a estiagem se prolonga. No cenário urbano, esse caldo é substituído por mingau ralo de farinha ou outras receitas com ingredientes baratos, de poucos nutrientes e fáceis de preparar.
Se a segurança alimentar fosse uma hora do dia, a fome seria exatamente seu ponto oposto no relógio – e a insegurança quanto à próxima refeição, os momentos que a antecedem.
O que é segurança alimentar?
A segurança alimentar é o acesso regular e permanente a alimentos nutritivos e em quantidade suficiente para garantir uma vida saudável e ativa, de acordo com a definição do Ministério da Saúde. Além de uma necessidade básica, é um direito fundamental e um pilar essencial para a construção de uma sociedade justa e próspera.
Falar sobre segurança alimentar e nutricional é analisar a quantidade e qualidade dos alimentos aos quais as famílias têm acesso. A Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia) é a principal medida dessa percepção, classificando os domicílios em quatro categorias:
- Segurança alimentar. Nesse cenário, os moradores do domicílio acessam alimentos de qualidade e em quantidade suficiente sempre;
- Insegurança alimentar leve. Quando há um comprometimento da qualidade da alimentação em detrimento da manutenção da quantidade percebida como adequada. Ou seja, quando mesmo fazendo diversas refeições, a família tem acesso a alimentos de pobre qualidade nutricional;
- Insegurança alimentar moderada. Para domicílios com modificações nos padrões usuais da alimentação entre os adultos, concomitante à restrição na quantidade de alimentos entre os adultos. Isto é, quando os adultos comem menos e pior, mas não há o mesmo prejuízo nas refeições das crianças;
- Insegurança alimentar grave. É a quebra dos padrões de alimentação – com comprometimento da qualidade e redução da quantidade de alimentos – de todos os membros da família, inclusive das crianças. Nesse nível de insegurança alimentar pode até mesmo existir as experiências de fome e desnutrição.
A fome no Brasil e as crises econômicas
A fome no Brasil e no mundo precisa ser tratada como um problema multifacetado, com raízes profundas na pobreza, na desigualdade social, nos conflitos armados e na degradação ambiental, com diversos gatilhos, a depender do contexto.
O sentimento de fome não está restrito à ausência de comida, mas também está atrelado à dignidade humana. A fome gera impactos na saúde, na educação, no desenvolvimento social e até na habilidade de indivíduos e grupos de exercerem seus direitos.
As crises econômicas, no Brasil e pelo mundo, são um dos principais fatores da fome: ao causar a perda de empregos e afetar a renda, essas crises prejudicam os orçamentos familiares para a alimentação e aumentam os custos de vida. Indiretamente, cenários de recessão forçam o corte de investimentos do poder público, impulsionando a pobreza e agravando a questão da insegurança alimentar, onde se incluem a fome e a desnutrição.
Desafios da segurança alimentar no mundo globalizado
O mundo globalizado do século XXI apresenta desafios inéditos para a segurança alimentar e nutricional. Apesar de números recordes da produção agrícola, resultado do aprimoramento tecnológico da agricultura, ainda existem fome e desperdício de alimentos no Brasil e no mundo.
- Crescimento demográfico. A crescente população mundial, atualmente em mais de 8 bilhões de pessoas, exige uma maior produção de alimentos. O atual desafio do setor agropecuário é melhorar o rendimento das lavouras e rebanhos sem expansão territorial – um recurso extremamente limitado;
- Mudanças climáticas. As mudanças climáticas estão impactando a produção de alimentos em virtude das alterações no regime de chuvas e do aumento na frequência de eventos extremos. Essa combinação tem comprometido a produtividade agrícola a cada ano, elevando os preços e a disponibilidade de alimentos no mercado;
- Degradação ambiental. O atual modelo agrícola utiliza vastas extensões territoriais, pressionando os recursos naturais – já escassos. A degradação dos solos, o desmatamento e a poluição de rios e oceanos comprometem a produção de alimentos e afetam a qualidade dos recursos naturais essenciais para a agricultura e a pecuária;
- Desigualdade social. A concentração de renda e o acesso desigual à terra, educação e saúde influenciam diretamente o acesso a alimentos nutritivos e de qualidade. A desigualdade social acaba perpetuando a insegurança alimentar, a desnutrição e a fome em regiões ou populações carentes;
- Problemas de distribuição. Assim como ocorre com outras commodities, a logística da entrega de alimentos a toda a população do mundo também possui seus desafios. Seja por conflitos armados, as mudanças climáticas, crises econômicas ou o desperdício de alimentos, muitos fatores dificultam o acesso aos produtos agropecuários. Até mesmo o foco nas exportações em detrimento dos mercados internos é um obstáculo para a segurança alimentar.
O Brasil no cenário global de combate à fome
Celeiro do mundo. Esse é o título do Brasil no contexto internacional, em virtude da produção anual de cerca de 300 milhões de toneladas de grãos e cereais e 30 milhões de toneladas de carne (bovina, de frango e suína), segundo dados do IBGE. No entanto, ser o maior produtor de alimentos do mundo não é o suficiente, é preciso também adotar medidas para proporcionar sua distribuição interna corretamente.
As políticas públicas brasileiras de combate à fome, como o Programa Fome Zero, já apresentaram excelentes resultados no país, como a retirada do Brasil do Mapa da Fome da ONU, no período de 2014 a 2021. Em 2022, voltamos a contabilizar mais brasileiros sem a certeza da próxima refeição do que a média global, e agora, o Governo Federal busca retornar ao patamar de país sem fome.
O desperdício de alimentos no Brasil também é um problema que deve ser encarado com políticas públicas sérias. Cerca de 55 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente, da colheita à mesa do consumidor – agravando ainda mais o problema da fome no país. De acordo com a Agência Senado, o Brasil tem o potencial de até mesmo erradicar a fome em âmbito nacional, com a gestão otimizada de recursos e políticas assertivas para o tema.
Usando o conhecimento adquirido, o Brasil também tem apresentado propostas no cenário global para combater a fome em outros países. Dentre os projetos está a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza no G20, grupo das 20 maiores economias do planeta, para pensar em um conjunto de políticas públicas para a transferência de renda, proteção social, alimentação escolar e outros programas a partir das experiências de diversos países e organizações internacionais.
Um futuro com segurança alimentar é um futuro sem fome
Garantir a segurança alimentar para todos é um objetivo que requer coordenar a implementação de ações abrangentes, envolvendo o poder público, além de organizações internacionais, a sociedade civil e o setor privado. Cada um desses atores pode contribuir de forma diferente para a questão da fome no Brasil:
Criação e fortalecimento de políticas públicas
Nas três esferas do poder público, é preciso planejar investimentos em diversos programas, do apoio à agricultura familiar e promoção de práticas agrícolas sustentáveis às iniciativas para garantia do acesso a alimentos nutritivos para populações vulneráveis e do combate à desnutrição.
A geração de emprego e de renda também precisa ser considerada, já que é um fator de influência indireta à segurança alimentar.
Combate às desigualdades social e econômica
Eliminar as desigualdades da sociedade é parte fundamental da base necessária para reduzir a pobreza e a desigualdade.
No passado do Brasil, programas de transferência de renda, políticas de emprego e de acesso à educação e à saúde foram extremamente eficientes no impulsionamento de grupos populacionais rumo à segurança alimentar e nutricional.
Promoção da agricultura sustentável
O pacote de medidas inclui o incentivo à agroecologia, agricultura familiar, além de práticas de produção de alimentos que reduzam o impacto ambiental e promovam a sustentabilidade dos sistemas agrícolas.
Essas medidas contribuem com o combate às mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que aumentam a disponibilidade de alimentos para a população, seja nas cidades ou no campo.
Combate ao desperdício de alimentos no Brasil
Ações para reduzir o desperdício de alimentos ao longo da cadeia produtiva, do transporte ao consumidor final, são fundamentais para garantir mais segurança alimentar e nutricional para todos.
Ao adotar medidas como a melhoria da infraestrutura de armazenamento e programas de incentivo ao consumo consciente e ao aproveitamento de alimentos que seriam descartados, muda-se a cultura de consumo, diminuindo as perdas e os descartes de produtos perfeitos para a alimentação.
Incentivar o consumo local, sazonal e de produção mais sustentável ajuda o combate à fome e as mudanças climáticas.
A combinação desses conhecimentos, além de diminuir a pegada de carbono da alimentação, valoriza a diversidade cultural e gastronômica, fortalecendo também as agriculturas familiar e urbana – formas de diminuir as desigualdades sociais no campo e na cidade.
O compromisso coletivo pela segurança alimentar de todos
Trabalhar pela segurança alimentar nacional é, literalmente, combater a fome no Brasil. Essa tarefa é extremamente complexa, exigindo a mobilização de toda a sociedade – das esferas do governo às empresas e cidadãos.
E, sendo um objetivo tão complexo, todos devem trabalhar em conjunto para a aplicação das políticas públicas, gestão adequada dos recursos e a construção, gradual, de um futuro onde todos tenham acesso a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, vivendo com dignidade e saúde.
É urgente que haja medidas que busquem a segurança alimentar e nutricional de todos, de modo que a fome não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento humano. Assim como todos têm o direito, assegurado pela Constituição Federal, de viver com dignidade, é preciso trabalhar pelo acesso universal a uma alimentação saudável.
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