Por Jeniffer Mendonça — Ponte Jornalismo
A possibilidade de dar um último abraço no filho foi tirada da dona de casa Maria Cristina de Almeida, de 62 anos. A imagem que ela guardou na memória foi a da última visita, que aconteceu em 4 de agosto. “Meu filho estava branco que nem cera, deitado na cama, com as pernas geladas, totalmente debilitado e nem me reconheceu”, lamenta. “Eu peguei na cabeça dele e a única coisa que eu fiz naquele dia foi dobrar meu joelho, chorar e clamar ao senhor para que tivesse misericórdia dele”, diz, às lágrimas.
Com o celular nas mãos, ela insistiu por um retorno da Penitenciária 1 de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, para saber sobre o estado de saúde de Márcio Izaías de Almeida, 35, que passou a usar cadeira de rodas em 2022 após complicações de uma fratura no joelho e uma queda em outra unidade prisional. Márcio sofria de diabetes desde criança e precisava tomar insulina pelo menos três vezes ao dia.
A resposta do presídio nunca veio. Desde julho o governo Tarcísio adotou como política limitar a comunicação entre presos e familiares. Até que Maria, que não tem costume de olhar sempre a caixa de e-mails, resolveu abrir no dia 14 de agosto e não acreditou no que leu: “Prezada, bom dia! Informo que na data de 13/08/2024, às 21:50 horas, foi constatado pelo médico Dr. Sidney Ramos Seabra, CRM 27.783, o óbito do sentenciado Marcio Izaias de Almeida, matrícula 483.643-3, tendo como causa da morte, choque séptico de foco pulmonar”.
O remetente era o Centro de Referência de Assistência Social da P1 de Franco da Rocha. “Quando eu li aquilo, fiquei indignada com a falta de consideração comigo, porque poderiam ter me ligado ainda de noite, eu deixei o número do celular para isso. Meu filho morreu às 21h50 do dia 13 e me mandaram o e-mail às 9h37 da manhã do dia 14. Se eu não tivesse aberto o meu e-mail, nem ia saber”, conta, revoltada.
A própria Secretaria de Administração Penitenciária reconheceu que essa não é a forma correta de comunicar a morte de um preso à família (leia a nota ao final da reportagem).
Maria afirma que não chegou a ser avisada de que o filho estava no Hospital Estadual de Francisco Morato e perdeu a chance de visitá-lo. “Eu liguei para a cadeia e a moça da administração disse que não poderia fazer nada. Quer dizer, quando meu filho estava vivo, ele era responsabilidade do Estado, o Estado que mandava e desmandava na saúde dele, e quando ele morre é a família que se vira?”.
‘Na enfermaria não tem médico’
Naquela última visita ao presídio, Maria conversou com colegas de cela de Márcio, que disseram que ele estava sem conseguir se alimentar há pelo menos 15 dias porque vomitava, e que tomou omeprazol, um remédio para problemas gastrointestinais, quando foi para a enfermaria. “Você via a garrafinha [sonda] que ele usava e saía pus junto com a urina. Um cheiro muito forte, e ele estava com febre. Tentei chamar um médico ali na hora, mas o menino disse ‘nem tenta, tia, porque não tem ninguém na enfermaria e, se levar na enfermaria, ele vai ficar jogado lá’”, denuncia.
Ali, a dona de casa já pressentiu: “Meu filho vai morrer aqui”. No dia seguinte, Maria conta que tentou ligar na penitenciária atrás de notícias, mas ninguém a atendeu. “Eu só fui descobrir que meu filho foi levado para a UPA 24 horas de Franco da Rocha porque fui ligando de hospital em hospital falando o nome dele até que uma cunhada que é enfermeira conseguiu confirmar”, afirma. “Foi passado para mim que ele estava estável e que o médico ia pedir transferência para um hospital melhor. Ele foi internado no dia 5, mas fiquei sabendo depois que ele foi transferido no dia 8 para o hospital de Francisco Morato, onde morreu”.
A mãe quer entender o que aconteceu e esclarecer a morte de Márcio. “Meu filho entrou na cadeia andando e saiu numa maca direto para o caixão”, lamenta.
Márcio foi preso em 2021 por tráfico de drogas. Na época, ele andava mancando já que tinha uma fratura em um dos joelhos. Segundo Maria, ele foi agredido por policiais em uma abordagem um ano antes, mas o filho não quis denunciar por medo. “Chutaram muito a perna dele e os vizinhos que socorreram. Ele ficou um tempo com gesso na perna, passou por cirurgia e foi colocada placa de platina”, diz.
De acordo com ela, nos meses que Márcio ficou detido aguardando julgamento no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, o joelho teve complicações. “O corpo estava rejeitando a platina”, conta. “Ali no CDP eu não tenho do que reclamar, porque sempre atenderam ele, levavam no hospital, ele fez outra cirurgia”. Naquele mesmo ano, Márcio foi condenado a sete anos, três meses e 15 dias de prisão em regime fechado, além de pagamento de multa.
Três pedidos de prisão domiciliar negados
Os problemas de saúde se agravaram a partir de novembro de 2021, quando Márcio foi transferido para a Penitenciária de Presidente Bernardes, no interior paulista, para cumprir a pena, segundo Maria. O filho, que andava de muletas, sofreu uma queda que teria prejudicado ainda mais sua locomoção. A perna com o joelho fraturado também começou a atrofiar, o que fez ele ter que usar cadeira de rodas a partir do mês seguinte. A mãe denuncia que, com recorrência, faltava medicação para o diabetes, e que ela é quem tinha de enviar a insulina.
Nesse período, foram feitos três pedidos de prisão domiciliar para que Márcio recebesse melhor tratamento, que foram negados pelo Tribunal Estadual de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2022. O primeiro pela Defensoria Pública, em julho daquele ano, que apontou ausência de água quente na penitenciária, falta de barras de acessibilidade na cela e o fato de que o detento era algemado pelos pés quando saía do hospital. Em outros casos, o mesmo tribunal concedera o benefício.
Esse relato foi colhido durante uma inspeção, em maio de 2022, feita pelo Núcleo Especializado em Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria, que havia requisitado atendimentos médicos de especialidades diversas a outros 127 detentos da Penitenciária de Presidente Bernardes. As queixas dos presos iam desde inflamação na pele por picadas de insetos, ausência de remédios para diferentes tratamentos, até solicitações de cirurgia por suspeita de câncer.
Márcio passou a usar sonda urinária após uma infecção tempos depois. Ele também estava com problemas na tireóide e estrabismo.
O juiz José Augusto Franca Junior alegou que o detento não poderia ter acesso à domiciliar por ter praticado crime grave, que ele estava sendo atendido e “não há notícia de que a saúde do executado esteja comprometida ou que o ambiente carcerário esteja em piores condições que o externo”.
O segundo pedido foi feito por uma advogada particular, que tinha se apresentado na unidade para oferecer serviços. Ela apontou que as sessões de fisioterapia agendadas não estavam sendo realizadas e que Márcio dependia dos outros presos para tudo, desde fazer sua higiene pessoal até usar o banheiro.
Apesar de a médica da unidade ressaltar a gravidade da situação de saúde de Márcio e sugerir “fortemente a transferência do paciente para outra unidade prisional com maior estrutura”, ela também escreveu que o detento recusava atendimento na enfermaria. Maria Cristina ressalta que o comportamento do filho se deu por conta das vezes que era levado ao local e ficava “abandonado”.
“Teve um dia que ele não queria tomar uma das três doses de insulina porque não tinha recebido alimentação boa, e passou mal quando tomou a primeira dose do dia”, afirma. “Ele ficava sozinho à noite na enfermaria, usava fralda e ficou por horas todo mijado e cagado para no dia seguinte a enfermeira ainda maltratar ele. Então ele tinha trauma da enfermaria”.
No dia 20 dezembro de 2022, Márcio foi transferido para a P1 de Franco da Rocha após decisão da juíza Renata Biagioni. O presídio foi considerado pela Defensoria Pública como uma cadeia “caindo aos pedaços” após uma inspeção feita em agosto de 2023. Superlotação, infiltração que levava chorume misturado com água e falta de ventilação foram algumas das violações elencadas.
Mais uma vez, a mãe não foi informada. “Eu liguei lá [na Penitenciária de Presidente Bernardes] para avisar que eu ia levar muleta nova para ele porque ele me pediu e o rapaz do setor disse: ‘Ele não se encontra mais aqui’. Eu falei: ‘Como assim? Onde tá meu filho?’ e ele só disse que não sabia. Fui ligando para as unidades até descobrir que ele estava na P1 de Franco da Rocha”, diz.
Ela conta que, na ligação, informaram que ele estava na enfermaria mas que ficaria internado no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário (CHSP), na capital paulista, onde passou quatro meses, para depois voltar para a P1. A terceira solicitação de prisão domiciliar foi escrita de próprio punho por Márcio, enquanto esteve nesse hospital, em fevereiro de 2023, mas também foi negada.
Maria descreve a P1 de Franco da Rocha como um “inferno”. “Lá no hospital não tinha o que reclamar, ele fazia a terapia, estava com a diabetes controlada, mas aí resolveram transferir ele e me disseram que ele não ia mais andar”, conta. “Em Franco da Rocha, eu que levava insulina, remédio, porque não tinha. Eu levava esparadrapo para pôr naquela bolsa de urina para não vazar, porque não forneciam nada. O Márcio começou a ter muito furúnculo porque ficava muito tempo sentado”, lembra.
A insistência por atendimento médico prosseguiu por todo o período, até o motim que ocorreu em 20 de julho. “A rebelião não foi no raio do meu filho, mas suspenderam a nossa visita também por uns 10 dias”, diz Maria.
De acordo com inspeção feita pela Defensoria Pública, nove dias depois do motim, tudo teria começado após a suspensão de visitas nos raios 2 e 3, sem comunicação aos presos e a familiares, como forma de punição depois que “um funcionário havia sido agredido ao se movimentar perto das bombas de água, sob a alegação de que os presos não queriam que a água fosse racionada”. Cinco detentos foram feridos, sendo dois por tiros de arma letal.
Maria só voltou a ver o filho na primeira semana de agosto, naquela última visita. Agora, quer entrar com uma ação judicial com pedido de indenização contra o Estado. “O que eu puder fazer para tentar mudar esse sistema carcerário, eu vou até o fim. Porque meu filho eu não vou ter mais de volta, mas não quero que aconteça com outros. Quantos mais têm que morrer para isso acabar? O preso é tratado que nem lixo. Como eles querem reeducar uma pessoa para voltar para a sociedade assim?”.
O que diz o governo Tarcísio
A Ponte procurou a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) na manhã de sexta-feira, 23/8, para falar sobre a morte de Márcio e as denúncias de Maria, a assessoria enviou a seguinte resposta:
“A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) lamenta a forma como foi comunicado o óbito do custodiado. A servidora responsável foi advertida e já recebeu orientações sobre o protocolo correto para contato com os familiares, feito por telefone. O e-mail só é usado caso o parente não atenda e com um pedido de retorno à ligação, sem nunca mencionar o motivo.
O custodiado citado ingressou na Penitenciária I de Franco da Rocha, em 20/12/2022, transferido da Penitenciária de Presidente Bernardes, para tratamento de saúde. Durante a permanência no presídio, ele recebeu medicação e atendimento diário na enfermaria. Quando necessário, foi levado à unidade de saúde externa. O referido presídio dispõe de equipe básica de saúde, composta por médico, enfermeiro, dentista e auxiliar de enfermagem, em parceria com o município de Franco da Rocha”.
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