Por Cristiane Sampaio — Brasil de Fato
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, pretende articular uma proposta de emenda constitucional que permita ao governo federal ter maior espaço na política de segurança pública de monitoramento de agentes das polícias por meio de câmeras corporais, medida hoje adotada apenas em alguns estados. O texto da proposta está em discussão na Casa Civil e a ideia da gestão é agilizar o debate sobre o assunto após as eleições, quando o Congresso Nacional retorna às atividades normais. A informação é do secretário Nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (MJ), Marivaldo Pereira.
Em conversa com o Brasil de Fato, ele disse que o tema da violência policial tem sido visto como uma das prioridades da pauta legislativa da pasta.
“Há duas recomendações da Senasp [Secretaria Nacional de Segurança Pública], uma nota técnica e uma de protocolo sobre o uso de câmeras corporais, mas o governo federal não tem poderes para obrigar os estados a utilizarem isso. O que o governo pode fazer é induzir, criar mecanismos que facilitem a adoção, etc., mas a decisão é sempre dos estados e, como a violência policial é um problema preocupante pra gente, o ministro Lewandowski vem discutindo essa PEC para tratar de normas gerais que permitam ao governo federal ter maiores poderes nisso. Há uma discussão inicial com os governadores para se constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e tudo isso será dialogado com o Congresso”, diz Marivaldo Pereira.
Na lista de pautas legislativas relacionadas ao assunto constam ainda duas propostas que têm sido ostensivamente demandadas por organizações da sociedade civil. A primeira é o projeto de lei (PL) 4471/2012, que estipula regras para qualificar a perícia diante de situações em que o emprego da força policial tenha resultado em morte ou lesão corporal. A proposta cria condições de apuração também para outros tipos de mortes registradas no país, englobando todo o contingente de óbitos violentos.
Visando à qualificação das perícias, o texto fixa a necessidade de realização de exame interno, produção de documentação fotográfica e coleta de vestígios encontrados durante o exame necroscópico, entre outras medidas.
A outra proposta em questão é o PL 2999/12, que cria a Lei Mães de Maio. A ideia é instituir um programa de enfrentamento aos impactos da violência institucional e da revitimização de mães e familiares de vítimas de ações violentas, ofertando uma estrutura de apoio a esse público-alvo.
“São duas propostas que estão também na pauta prioritária e estão em discussão no governo. Nossa ideia é, com o Congresso voltando do recesso eleitoral, fazer um esforço para que esse tipo de proposta avance no Legislativo. Além dessas, tem outras que dialogam com uma perspectiva mais orçamentária. Estamos vendo, por exemplo, como a gente consegue trazer recursos para incentivar e apoiar os estados na adoção das câmeras corporais. É um debate que temos feito e acho até que as emendas parlamentares podem ser, talvez, um caminho importante pra isso. O diálogo está sendo travado com a Senasp”, afirma o secretário do MJ.
Monitoramento por câmera: momento crucial
A constante violência policial tem produzido ecos e mobilizações por parte de entidades da sociedade civil que lutam pela ampliação e por uma consolidação da política de monitoramento de agentes de segurança. O objetivo é fazer com que a polícia siga com rigor os critérios nacionais e internacionais de uso da força, o que, segundo indicam as estatísticas, traz impactos diretos nos índices de violência policial.
Dados do Fórum de Segurança Pública mostram que, em São Paulo, por exemplo, houve redução de 62,7% do número de mortes decorrentes de intervenção policial desde 2020, quando a medida passou a ser adotada. As mortes de PMs também sofreram redução e caíram 53,7% no estado entre 2021 e 2023, de acordo com dados divulgados pela Globo News e obtidos a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI). Sob a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), a política tem sofrido ataques, mas segue como uma das principais demandas de especialistas e organizações ligadas ao tema da segurança pública.
Para o diretor de Litigância e Incidência da organização Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, o país vive um “momento crucial” para a implementação da medida de forma que se busque atender a critérios legais. “Tivemos, de um lado, o amadurecimento, ao longo do período anterior, de uma política bem-sucedida na maior polícia do Brasil, que é a Polícia Militar de São Paulo, que teve um ciclo interrompido por um governo que resolveu não se comprometer com a política. Tivemos também diversas incidências por parte da sociedade civil e até do próprio Supremo para evitar que o programa fosse desarticulado em São Paulo, ao mesmo tempo em que, ao nível nacional, tem havido um investimento e uma narrativa da importância dessa política, com a publicação de uma portaria nacional, e outros estados têm começado a investir nisso. Então, o momento é crucial para se tentar avançar.”
Legislativo
Do ponto de vista legal, a política de monitoramento de câmeras é sustentada pela ideia de controle externo da atividade policial, tarefa que cabe ao Ministério Público, segundo previsto na Constituição Federal. Para Gabriel Sampaio, em virtude dos números ainda bastante elevados de violência policial, é preciso ir além no quesito legislativo, buscando celeridade para o PL 4471/2012 e o PL 2999/12. O diretor da Conectas aponta que tais propostas ajudariam a “dar mais conteúdo” para o controle da atividade policial.
“Esse controle é fundamental tanto pras pessoas que são vítimas da violência como até pras próprias instituições porque garantem condições de transparência, de controle sobre a atuação das polícias e atendem a critérios que são nacionais e internacionais do uso da força, permitindo o acolhimento a pessoas que são vítimas, bem como situação adequada de perícia, de investigação e de solução dos crimes.”
Os dois projetos tramitam em regime de urgência e aguardam deliberação por parte do plenário da Câmara. No caso do PL 4471/2012, que busca estipular regras para perícias após casos de violência policial, o texto está com a tramitação estancada desde novembro de 2017. Pautas do gênero costumam esbarrar nos interesses da bancada da bala, formalmente conhecida como Frente Parlamentar da Segurança Pública. O grupo tem mais de 240 integrantes na Câmara e costuma atuar de forma bastante vocal contra medidas que limitem a atuação das polícias.
O deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), que na última segunda (9) presidiu uma audiência pública sobre o assunto na Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara, reconhece ao caráter crítico do cenário. “Infelizmente, eu tenho que ser sincero: a situação na Câmara é muito complicada. Quando você vê os projetos de lei na área de segurança pública, quase todos vão no sentido inverso [ao que a gente quer]: mais punição, mais autorização pra uma ação policial sem controle, sem critério e sem parâmetro. Mas, em nome da dignidade humana, em nome do compromisso com a luta do povo negro, desistir não é uma opção. É uma situação difícil, mas não vai encontrar em nós recuo nem acovardamento.”
Para o psolista, a política precisa avançar no Brasil como forma de atender aos padrões de exercício da cidadania. “O uso das câmeras corporais em agentes das forças de segurança pública é uma medida fundamental para o controle externo sobre a atividade polícia, a redução da letalidade policial e até para a proteção física e jurídica dos próprios policiais porque, no caso de haver alguma acusação infundada sobre uma abordagem policial, a própria câmera comprova ou comprovaria que nada de errado ele fez. Portanto, é uma medida com a qual todos ganham.”
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