Por Chico Alves
As eleições municipais de 2024 tiveram resultados que representam grande derrota para a esquerda brasileira. Partidos como PT e PSOL tiveram desempenho pífio nas urnas, enquanto legendas do Centrão, como PSD, MDB, PP e PL tomaram conta da maioria das prefeituras e câmaras de vereadores país afora.
Quais os motivos dessa queda? O que é possível fazer para que a esquerda volte a recuperar o espaço que ocupava no Brasil há poucos anos?
Para discutir essa questão, o ICL Notícias passa a publicar uma série de entrevistas com especialistas, políticos e militantes que podem ajudar a levantar reflexões importantes.
Na primeira matéria da série participam o historiador, escritor e político Jones Manoel; o cientista político Claudio Couto e o historiador, escritor e colunista do ICL Notícias João Cézar de Castro Rocha.
Jones Manoel
“Eu acho que tem três elementos: primeiro a esquerda brasileira, grosso modo, não oferece mais perspectivas de futuro. Ela se contentou com o melhorismo. Então, ela comemora os índices de crescimento do PIB, índices medíocres de formalização de emprego, ela não apresenta hoje perspectiva de resolução dos problemas estruturais do Brasil.
Ninguém, absolutamente ninguém, acredita que o governo Lula agora, em uma possível reeleição, vai significar, por exemplo, o fim do analfabetismo no Brasil, o fim do déficit de saneamento básico e água tratada, o enfrentamento radical às mudanças climáticas, o pleno emprego e o fim do emprego precário, a universalização do SUS, da cobertura de atenção primária à saúde com SUS realmente de qualidade poderoso e tal.
Então, essa esquerda não apresenta perspectiva de futuro. O principal afeto mobilizador dela é o medo: ‘vota em mim porque o outro lado é pior’, ‘eu sou menos pior’, ‘o outro lado vai atacar, vai retirar direitos, vai piorar sua vida’, ‘eu não vou melhorar muito, mas eu vou melhorar um pouquinho’. Esse é o primeiro aspecto central, não tem uma perspectiva de futuro.
A segunda questão central é um discurso hiperfragmentado que não consegue reunir diversas lutas, diversas causas, diversas bandeiras importantes num projeto de país, num projeto que, a meu ver, tem que ser revolucionário, da revolução brasileira. Mas, para além de uma perspectiva comunista, um projeto de país de qualquer vertente que seja. Então você tem as causas ambientais, as causas feministas, a causa antirracista, a causa LGBT, a causa da mobilidade, a causa da saúde, a causa da cultura e uma dificuldade de unificar num plano nacional, de conseguir dar um sentido aglutinador universalista para as diversas lutas, bandeiras, causas, movimentos.
Há uma dificuldade gigantesca em fazer isso. Tanto é assim que hoje quem mais fala de uma perspectiva universalista, ainda que reacionária, é extrema direita. Projeto de país, concepção de nação, de nacionalismo, de sociedade de valores. Por aí vai.
E o terceiro aspecto fundamental é o envelhecimento e burocratização das esquerdas de maneira geral. Então, novas lideranças simplesmente não têm espaço. Isso em todos os partidos. Todos. Da centro-esquerda até a esquerda. Então, você tem coisas muitos chamativas, por exemplo, nessa eleição. O Renato Freitas, jovem liderança em ascensão no PT do Paraná não tem o espaço que deveria, pelo contrário, quando estava para ser cassado o Lula jogou ele aos leões e deixou. Matheus Gomes, do PSOL Rio Grande do Sul, não conseguiu ser candidato. Simplesmente não tem espaço. E por aí vai.
É um processo de burocratização, de envelhecimento. Você olha, por exemplo, um panorama dos ministros petistas, ministros de esquerda ou progressistas do governo Lula. É o Carlos Lupi, do PDT, é o Rui Costa, é o Camilo Santana, é o Wellington Dias…
Enfim, figuras que estão aí na política há décadas, burocratas sem conexão nenhuma com o movimento social, sem conexão nenhuma com o campo da cultura, sem capacidade de formular de maneira teórica e sistemática sobre o Brasil, sobre os desafios do país, sobre as principais demandas que a gente tem numa era de cada vez mais enfrentamentos polarizados entre China e Estados Unidos, risco de Terceira Guerra Mundial, desastre climático batendo à porta, uma nova revolução industrial também batendo à porta e o Brasil ficando pra trás… por aí vai.
Se eu fosse resumir eu diria que esses três elementos são centrais na perspectiva de mudança para transformar a esquerda brasileira e ela volta a ter capacidade de recuperar espaço político no Brasil.”
Claudio Couto
“Essa é uma boa pergunta, acho que é quase uma daquelas perguntas de um milhão de dólares. A esquerda precisa evidentemente perceber em que ela não está conseguindo estabelecer um diálogo com grande parte da população. E isso com diferentes classes sociais. Afinal de contas, a direita não só manteve um peso muito grande nos municípios.
Lembremos que essa direita tradicional, direita do assim chamado Centrão, sempre teve uma preponderância na política municipal. Basta lembrar que os partidos do Centrão, o MDB no passado, sempre foram os reis das eleições municipais, quando você vai pro interior. Mas a esquerda, já há muitos anos, costumava ter um peso grande na disputa municipal nas cidades médias e grandes. E nem isso mais está conseguindo ter.
É bom lembrar que ela tomou um tombo dos maiores possíveis na eleição de 2016, aquele ano do impeachment, ano da recessão no governo Dilma, o ano também da Lava Jato no seu ápice. O PT perdeu naquele ano 60% dos seus prefeitos e vereadores e nunca mais se recuperou. A questão é saber por que não conseguiu nunca mais recuperar. Teve uma melhora muito sutil em 2020, teve mais uma pequena melhora agora, mas é tão pouco perto de se perdeu lá atrás que continua comendo poeira.
Ao mesmo tempo, a gente vê esse baita crescimento de alguns partidos dessa direita tradicional. O PSD acho que é o caso mais notável, mas sobretudo esse crescimento de mais de 200% do PL, do bolsonarismo. Acho que aí tem um dado que é o fato de que a extrema direita realmente consolidou o espaço na política nacional ao longo dos anos Bolsonaro. Aquilo que foi um momento de explosão da insatisfação e acaba levando à eleição do Bolsonaro em 2018 produziu uma possibilidade de crescimento.
Depois, Bolsonaro abriu esse espaço para a direita de um modo geral e para a extrema em particular. E esse espaço se firmou inclusive em nível municipal. Daí esse número muito significativo de municípios, inclusive médios e grandes, onde candidatos do bolsonarismo mais estrito, o PL mas também alguns outros partidos apoiados por ele foram bem.
Acho que tem que começar a pensar tudo de novo. Foi mencionada nesses dias uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2017, que mostrava como há uma nova maneira de enxergar o mundo nas periferias das cidades. Tem os setores das periferias que estão querendo uma conversa diferente, um estado mais eficiente, de menos burocracia, de mais capacidade de resolver problemas individuais, o que não significa dispensar políticas sociais. E acho que está faltando esse entendimento de como travar essa esse diálogo, que as igrejas evangélicas estão conseguindo fazer e mais ainda a extrema direita.
Então, acho que tem que realmente parar para pensar e levar mais a sério o que aquela pesquisa de 2017 descobriu”.
João Cézar de Castro Rocha
Algumas considerações são necessárias para que se entenda a consolidação da extrema direita no Brasil, que, não nos enganemos, veio para ficar.
Em primeiro lugar, desde 2002, o PT esteve no poder por sólidos 16 anos (de 2002 a 2016 e de 2023 até hoje). Portanto, para quem nasceu, digamos, a partir de 1995, o establishment no Brasil é o PT, ou seja, a esquerda! Circunstância única na história brasileira e que autoriza a equação de outra forma incompreensível: ‘Sou de direita porque sou contra o sistema’.
Ademais, a luta ideológica, que no passado definia o campo da esquerda democrática, foi apropriada pela extrema direita. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, políticos da extrema direita investem sem trégua numa pauta de radicalização ideológica. Para tanto, a maestria com que dominam os meios digitais ameaça emplacar goleadas em série.
A esquerda democrática precisa voltar à luta ideológica e esclarecer sua visão do mundo para o eleitorado. Não adianta levar adiante políticas públicas progressistas se ocorre uma despolitização da gestão. E, claro, para que esse movimento seja possível, a reconexão com as bases é o passo mais importante.
Mas sem alarmismos apocalípticos: nas últimas seis eleições presidenciais, o PT venceu em cinco ocasiões. Objetivamente, portanto, parece que sabem o que estão fazendo. Contudo, sempre se pode aperfeiçoar práticas e teorias.
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