No álbum que gravou com Maria Bethânia, em 1975, Chico Buarque incluiu a música “Notícia de jornal”, de Haroldo Barbosa e Luís Reis. A letra é praticamente uma crônica sobre a triste história de uma fictícia “Joana de tal”, que atentou contra a vida num humilde barracão, por causa de um tal João.
A letra narra as consequências dramáticas de um amor malsucedido, que chegou às manchetes sem que os jornalistas dessem a devida importância aos detalhes mais humanos da história. Por isso, o poeta termina a letra dizendo: “a dor da gente não sai no jornal”.
Quase como um ombudsman, o autor da música critica o jornalismo por noticiar tragédias sem se importar verdadeiramente com o sofrimento das vítimas (quase sempre gente pobre).
Em uma escala muitas vezes maior do que o cenário da favela carioca em que vivia “Joana de tal”, é possível confirmar nos nossos dias a tese de Haroldo Barbosa em nível planetário, no conflito entre Israel e Hamas.
A imprensa brasileira consegue a proeza de relatar diariamente a guerra sem dar a verdadeira dimensão da dor dos palestinos, que assistem a cada momento milhares de civis sendo massacrados por Israel.
A terrível dor dos israelenses que perderam 1.400 parentes e amigos assassinados pelos terroristas do Hamas, no dia 7 de outubro, tem sido relatada na midia várias vezes – e os jornalistas têm toda razão em fazê-lo. Também a angústia dos que esperam a volta dos mais de 200 reféns levados pelo grupo é mostrada diariamente, de forma acertada.
Do outro lado, porém, a devastação causada pelos israelenses em Gaza é exibida nas TVs e nos sites quase que exclusivamente pelo ponto de vista do governo de Benjamin Netanyahu. “Israel anuncia que vai iniciar ataque por terra”, “Israel informa que matou líder do Hamas”, “Israel nega que tenha atacado hospital”… O sujeito da frase é quase sempre o mesmo no noticiário.
O número de mortes ou os detalhes sobre os bombardeios a hospitais e escolas de Gaza, relatados pelo Ministério da Saúde, sob controle do Hamas, são sempre divulgados pela imprensa com a ressalva: “Não foi possível confirmar as informações”.
Por que os veículos de comunicação duvidam somente de um dos lados? A imprensa pode considerar confiáveis os dados de um governo liderado por alguém como Netanyahu? Pode dar credibilidade ao que diz a equipe do presidente Isaac Herzog, capaz de dizer abertamente que não há civis inocentes em Gaza?
Mas o pior da cobertura da imprensa está em mostrar o que acontece em território palestino sem passar a real proporção da tragédia. Desde o início do conflito, a maior do tempo de cobertura dos grandes veículos brasileiros tem sido ocupada com imagens cedidas por Israel, em que aparecem prédios e casas sendo explodidos e misseis cruzando os céus, como em um game.
Somente nas redes sociais, em vídeos e fotos de jornalistas independentes, que permanecem em Gaza, era possível ver a expressão de desespero dos pais e mães que perderam seus filhos ou das crianças que perderam seus pais.
É compreensível que se queira evitar cenas fortes, mas sem mostrar ao menos rapidamente ou com tarjas os corpos ensanguentados ou a quantidade de cadáveres depois de cada ataque israelense é impossível contar com fidelidade a história desse massacre.
Com as honrosas exceções do ICL Notícias, que mandou para a Cisjordânia a jornalista Heloisa Villela, e a Band, que contou com o repórter Yan Boechat, os meios de comunicação do Brasil não tiveram correspondentes nem mesmo na parte mais segura do território palestino. Já os enviados a Israel são muitos.
Apenas nos últimos dias, quando o número de civis mortos em Gaza chegou a seis vezes o número de vítimas israelenses do dia 7 de outubro, a imprensa brasileira parece ter reavaliado a cobertura. Passou a lançar mão dos vídeos e fotos dramáticos que as agências internacionais produzem diariamente em solo palestino. Mas ainda de forma insuficiente para transmitir ao público o que acontece.
Não é possível noticiar fielmente o massacre em Gaza sem que o espectador veja o choro dolorido do homem que perdeu a família inteira em uma explosão, ou o desespero do pai que cava os escombros de um prédio com as próprias mãos para procurar a filha soterrada ou a ainda expressão de terror nos olhos de uma criança que sobreviveu ao bombardeio no qual seus parentes foram dizimados.
É preciso repudiar o ataque terrorista do Hamas em Israel e ser solidário com as familias que sofrem com os reféns nas mãos dos terroristas. A imprensa do Brasil tem dado cobertura adequada a esses dramas.
A carnificina que acontece em Gaza é que ainda não tem uma boa tradução no noticiário.
No Brasil, infelizmente, a dor dos palestinos não sai no jornal.
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