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A eugenia e o legado de preconceito dessa pseudociência tão perigosa

A eugenia foi uma pseudociência usada no século 20 para disfarçar o preconceito e violências contra grupos marginalizados. Entenda porque não podemos esquecê-la
09/10/2024 | 15h07

A eugenia foi um movimento que surgiu no século XIX e prometia “melhorar” a espécie humana por meio de intervenções genéticas e sociais. Essa ideia impulsionou diversas políticas de discriminação, segregação e violência contra grupos marginalizados ao redor do mundo.

Sob o pretexto de seguir preceitos científicos e mascarando preconceitos de progresso, o eugenismo nada mais era do que um compilado de ideias racistas e elitistas que buscavam controlar a reprodução humana e eliminar traços considerados “indesejáveis”.

O que é eugenia?

Eugenia é um movimento pseudocientífico que defende a melhoria da espécie humana através de intervenções genéticas e sociais para eliminar traços considerados “indesejáveis” e promover a reprodução de indivíduos com características “superiores”.

A eugenia se baseia em uma visão hierárquica e elitista da humanidade, classificando indivíduos e grupos sociais em categorias de “superiores” e “inferiores”. Esse termo foi criado pelo cientista britânico Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin.

Aliás, todo o conceito de seleção natural de Darwin foi o que inspirou Galton para defender a ideia de que a humanidade poderia ser “melhorada” através de uma seleção artificial de indivíduos com características consideradas desejáveis.

Galton acreditava que era dever da sociedade interferir no processo de reprodução humana para impedir a proliferação de indivíduos “inferiores” e para estimular a reprodução de indivíduos “superiores”, além de contribuir para a redução da população “indesejada”.

A teoria eugenista e suas aplicações pelo mundo

As teorias eugenistas se baseavam em uma visão hierárquica e discriminatória da humanidade. Elas classificavam indivíduos e grupos sociais em categorias de “superiores” e “inferiores”, baseando-se em critérios raciais, sociais, e comportamentais.

Além disso, o eugenismo também considerava que características como “pobreza” ou deficiências, de nascença ou adquiridas ao longo da vida, seriam transmitidas geneticamente aos descendentes.

Alguns dos principais argumentos dos eugenistas incluíam as questões do racismo e da superioridade racial, segundo os quais os eugenistas defendiam a ideia de que existiam raças humanas “superiores” e “inferiores”. Eles acreditavam que as raças “superiores” eram mais inteligentes, mais fortes e mais aptas a governar a sociedade. Essa visão racista foi utilizada para justificar a escravidão, a segregação racial e o genocídio.

Até os tempos atuais, grupos de extrema-direita usam ideias eugenistas para embasar preconceitos e tentar justificar práticas discriminatórias, como a violência contra a população negra e até mesmo a possível esterilização de grupos mais carentes da população.

Os eugenistas também defendiam uma visão hierárquica da sociedade, acreditando que as pessoas de classe alta eram geneticamente superiores às pessoas de classe baixa. Essa concepção foi o argumento tida como “científica” para justificar a desigualdade social, a exploração das classes trabalhadoras e até mesmo a falta de políticas públicas buscando a justiça social.

Os comportamentos sociais foram considerados um limite, separando pessoas “normais” das “anormais”, de acordo com os eugenistas. Os critérios utilizados para definir quem se enquadrava em qual situação, no entanto, eram extremamente arbitrários. Essa visão foi utilizada para justificar a esterilização compulsória de pessoas com deficiências e doenças mentais, e a categorização de outras pessoas como “criminosas”.

A eugenia e suas adaptações pelo mundo

A partir do final do século XIX, as ideias eugenistas se difundiram rapidamente pelo mundo, principalmente em países com cenários de muita desigualdade e um histórico de racismo estrutural. O movimento eugenista ganhou força em países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, México, Austrália e até mesmo em nações consideradas desenvolvidas, incluindo Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega.

Pensando que boa parte das características de um indivíduo é “herdada”, incluindo as ruins, a eugenia era vista como uma ciência que promovia o bem-estar social e o progresso da humanidade, trabalhando de forma ativa e arbitrária para descartar os membros mais “fracos” da sociedade.

Isso levou a políticas públicas de esterilização forçada de pessoas com deficiência, negros ou de qualquer um que fosse considerado “inferior” ou “indigno” de transmitir seus genes dentro daquele grupo.

Quais as diferenças entre a eugenia e a seleção natural?

A teoria de Charles Darwin sobre a seleção natural estabelecia que existe um processo biológico favorecendo a sobrevivência de indivíduos com características mais adequadas a um determinado ambiente. Esse filtro, totalmente natural, leva gerações para ser aplicado e não pode ser controlado pelo homem.

A eugenia, ao contrário da seleção natural, é uma intervenção humana no processo de reprodução, com o objetivo de controlar a evolução da espécie de forma rápida e direcionada. Ela se baseia em uma visão elitista e discriminatória da humanidade, não se sustenta em bases científicas sólidas e acontece de forma acelerada, ao contrário da seleção natural.

Por isso, apesar da parentalidade dos dois idealizadores, podemos afirmar que a eugenia é exatamente o oposto da seleção natural. A inspiração na genética moderna foi completamente distorcida para perpetuar preconceitos.

Quem são os principais representantes do movimento eugenista?

Francis Galton, o criador do termo “eugenia”, foi um cientista britânico que defendia a ideia de que a humanidade poderia ser “melhorada” através da seleção artificial em que características tidas como ruins ou prejudiciais para o grupo.

Charles Davenport, biólogo americano, fundou o Departamento de Eugenia na Estação Experimental de Cold Spring Harbor, em Nova York. Davenport desenvolveu uma teoria da hereditariedade humana que defendia a superioridade da raça branca e das classes sociais privilegiadas, ao mesmo tempo em que se opunha à miscigenação nos Estados Unidos.

Madison Grant, escritor americano, defendia a ideia de uma “raça nórdica” superior e acreditava que os Estados Unidos deveriam impedir a imigração de pessoas de raças “inferiores”, como os judeus e os africanos. Também escreveu uma das principais obras do racismo científico, “A passagem da grande raça, ou A base racial da história europeia” (no título original “The passing of the great race or the racial basis of European history”).

Ironicamente, Grant também atuou como conservacionista, trabalhando com a preservação da vida selvagem e recebeu diversos prêmios por salvar espécies da extinção.

Harry Laughlin foi diretor do Departamento de Eugenia da Estação Experimental de Cold Spring Harbor, desde sua fundação, em 1910, até seu fechamento em 1939. Laughlin foi uma das principais vozes na política de eugenia dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito à legislação de esterilização compulsória de grupos marginalizados.

Pessoas com deficiências, doenças mentais, negros e até mesmo economicamente desfavorecidas passavam por procedimentos de esterilização compulsória.

Exibição dos princípios de eugenia nos Estados Unidos. Crédito: Domínio Público

Exibição dos princípios de eugenia nos Estados Unidos. Crédito: Domínio Público

A eugenia como expressão do nacionalismo

As ideias eugenistas foram frequentemente mascaradas de nacionalismo, com o argumento de que a melhoria da espécie humana era essencial para o fortalecimento da nação e o progresso nacional. Eles defendiam políticas que privilegiavam determinados grupos raciais e sociais em detrimento de outros, utilizando o nacionalismo como verniz e mascarando as reais intenções racistas e elitistas por trás dessas atitudes.

O nazismo na Alemanha é um dos principais exemplos de como as ideias eugenistas podem se tornar perigosas e levar ao genocídio de populações inteiras. Os nazistas defenderam a “pureza racial” ariana e utilizaram esse argumento para justificar o holocausto, a esterilização compulsória de pessoas com deficiências e o assassinato de pessoas consideradas “inaptas” para viver em uma sociedade “ideal”.

Cartaz nazista mostra o crescimento da raça nórdica. Crédito: National Archives and Records Administration/ Domínio Público

Cartaz nazista mostra o crescimento da raça nórdica. Crédito: National Archives and Records Administration/ Domínio Público

Nos Estados Unidos, África do Sul e Austrália, as políticas de segregação racial também são consideradas eugenistas. Nesses países também foram implementadas, por curtos períodos de tempo, iniciativas de esterilização compulsória de grupos específicos da população.

A afinidade da eugenia com o racismo brasileiro

No Brasil, as ideias eugenistas se difundiram no início do século XX, influenciando políticas públicas e movimentos sociais. Os eugenistas brasileiros defendiam a “branquitude” como um ideal de raça superior e buscavam “melhorar” a população brasileira através de políticas de segregação racial, controle da natalidade e de esterilização compulsória.

A eugenia encontrou terreno fértil em um país com um histórico racista como o Brasil. Além da segregação social por raças, o país ainda alimentava um forte sentimento de inferioridade em relação aos países europeus, o chamado “complexo de vira-lata”, o que contribuiu para a perpetuação do racismo e da eugenia no Brasil.

Atualmente, é possível encontrar vestígios dessa eugenia na arquitetura hostil das grandes cidades, pensada para impedir que moradores de rua se estabeleçam em determinados pontos da cidade, ou até mesmo na violência policial contra a população negra e periférica – como se a cor da pele ou o CEP de residência fosse, automaticamente, um atestado de inferioridade.

O racismo estrutural tem traços de eugenia até os dias de hoje.

Padre Júlio Lancellotti se tornou um dos principais críticos da arquitetura hostil em São Paulo. Crédito: Reprodução/ X

Padre Júlio Lancellotti se tornou um dos principais críticos da arquitetura hostil em São Paulo. Crédito: Reprodução/ X

Mundo afora, também notamos resquícios dessa pseudociência no preconceito com imigrantes, a seleção de embriões para fertilização invitro, ou mesmo nas práticas de aborto ou abandono infantil nos anos em que, na China, a política de filho único forçava as mulheres ao aborto assim que descobriam uma nova gravidez.

Os danos causados pela eugenia

O movimento eugenista foi responsável por inúmeras violações de direitos humanos, incluindo a esterilização compulsória de pessoas com deficiências, doenças mentais e pessoas consideradas “criminosas”, a segregação racial e o genocídio de grupos étnicos e raciais. Essas violações também favoreceram a perpetuação do racismo, do preconceito e da discriminação contra grupos marginalizados, legitimando a desigualdade social e a violação de direitos humanos.

Ao buscar estabelecer um padrão para a sociedade, a eugenia ignora a vantagem da diversidade humana e a riqueza da variedade genética. Homogeneizar a espécie humana, eliminando a variabilidade natural que é essencial para a evolução e a adaptação da espécie humana pode, no longo prazo, trazer problemas para a humanidade. Felizmente, acordamos para o problema antes que ele pudesse surgir e hoje a eugenia é combatida veemente.

Os perigos da eugenia e da suposta superioridade de um determinado grupo

A eugenia é uma pseudociência perigosa que se baseia em ideias racistas e elitistas e já causou inúmeros danos à humanidade, contribuindo para a perpetuação da desigualdade social e da violação de direitos humanos.

É fundamental que a sociedade continue a identificar e lutar contra essas ideias, práticas e formas de racismo e discriminação. A defesa da diversidade humana, a promoção da igualdade e o respeito aos direitos humanos são essenciais para construir um mundo mais justo e inclusivo.

A educação é fundamental para combater as ideias eugenistas. É necessário ensinar as pessoas sobre a história da eugenia, sobre seus perigos e sobre a importância da diversidade humana, como já ficou claro em outros momentos da humanidade.

A defesa dos direitos humanos é essencial para impedir que as ideias eugenistas sejam divulgadas novamente como uma solução para os problemas do mundo.

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