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O dia em que a direita tomou o poder em Sinop, ‘capital do Nortão’ do MT

Fogo, abstenções e derrota da esquerda marcam a eleição no celeiro bolsonarista em Mato Grosso
11/10/2024 | 05h00

Por Caio de Freitas, João Canizares — Agência Pública

Em menos de 24 horas entre a véspera e o domingo de eleição, quatro cenas em diferentes pontos de Sinop (MT), a 500 km da capital Cuiabá, ajudam a explicar o resultado da corrida eleitoral e a correlação de forças na “capital do Nortão” de Mato Grosso, mais antigo polo do agronegócio na rota da BR-163.

(Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Na véspera do pleito, Marcos Vinicius Borges, um jovem advogado condenado por estelionato e tráfico de influência, famoso nas redes sociais por sua vida de ostentação, percorre as ruas da cidade num veículo conversível de luxo avaliado em R$ 450 mil, escoltado por 14 membros de um motoclube, pedindo votos para sua própria candidatura a vereador pelo PSDB.

(Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Na tarde quente do domingo de eleição, um armador de vigas na construção civil da cidade faz, em sua folga, uma porção de concreto sob um sol escaldante diante de sua casa, numa favela que nem nome possui, próxima ao Jardim Araguaia. Ele vai erguer um batente para proteger os bens de sua família antes de as chuvas começarem, pois sua casa fica em um leve desnível por onde a água verte com força no período chuvoso. À Agência Pública, ele sorriu ao contar que não iria votar — “Eu tô ocupado”, disse.

(Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Próximo ao aeroporto da cidade, dois idosos e um homem na casa dos 30 anos usam dois baldes de água, galhos umedecidos e um rastelo de metal para combater, de improviso e sem apoio, um incêndio criminoso no loteamento rural São Lucas — repleto de chácaras e casas de madeira, vizinho a uma fazenda com 4,2 mil hectares voltados ao plantio de milho e soja. O incêndio só foi controlado graças à chegada providencial de uma chuva por 20 minutos no local, evitando o alastramento das chamas.

(Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Enquanto isso, a menos de 100 metros dali, com a apuração praticamente encerrada, pouco mais de 50 militantes do PT consolam a mulher mais bem votada na disputa por uma vaga na Câmara Municipal. Mesmo com seu bom desempenho nas urnas, Graciele Marques dos Santos, a única vereadora de esquerda em Sinop, não se reelegeu.

A vaga deixada pela vereadora do PT se soma a outras sete que terão novos titulares a partir de 1º de janeiro de 2025. A Câmara será inteiramente composta por políticos de direita e acolherá o “advogado ostentação” do PSDB, que pedia votos na véspera da eleição a bordo de um carro esportivo de luxo.

O resultado das urnas no último domingo (6) representou a posição de pouco mais de dois terços da população da cidade. Tal como o armador de vigas que trabalhava em melhorias para sua casa, mais de 37 mil eleitores — 31,5% do total — não foram votar.

Um dos dilemas para Sinop é a prevenção e o combate aos incêndios criminosos. A cidade tem uma série de terrenos baldios e lavouras em seu perímetro urbano, como o loteamento rural São Lucas, que são alvos constantes de queimadas ilegais como a observada pela Pública no domingo de eleição.

“Aqui tem gente que parece que não se importa com o outro, que taca fogo por maldade mesmo, porque todo mundo sabe do risco disso pras famílias daqui — minha mãe mora aqui do lado, por isso vim correndo assim que vi a fumaça subindo”, disse à reportagem um dos homens que combatia o fogo no loteamento, que se apresentou apenas como Felipe.

Por que isso importa?

  • A Agência Pública está percorrendo a BR-163, entre os estados de Mato Grosso e Pará, e o município de Sinop é um dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A região é extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que registram grande adesão ao bolsonarismo.

Mulher mais votada, vereadora não se reelege pelo estigma contra a esquerda

Única mulher na atual legislatura, a vereadora Graciele Marques dos Santos, a Professora Graciele (PT), está entre os oito vereadores que não se reelegeram. Pedagoga e representante dos profissionais da educação na Câmara, ela ficou conhecida na cidade como uma defensora de pautas ambientais, feministas, LGBTQIA+ e da agricultura familiar em meio ao fenômeno do bolsonarismo na política sinopense.

Não à toa, Graciele sofreu uma série de ataques e intimidações nos últimos quatro anos. “Divulgaram uma fake news que eu ia protocolar um projeto para impedir o bloqueio da BR [163], e a Câmara foi tomada, houve um monte de ofensas, havia mensagens em grupos de WhatsApp, e os manifestantes vieram, xingaram, tentaram impedir minha fala, atacaram minha assessoria e o então presidente [da Câmara, Elbio Volkweis] não fazia nada… nesse dia, que a gente mais precisava, não tinha um policial”, disse à Pública.

“Na eleição atual, teve gente envolvida com toda a crise pós-eleições em 2022 aqui que tentou capitalizar seu papel, tentando se eleger e atuando nas candidaturas de extrema direita… contamos umas dez candidaturas, incluindo a do ex-presidente da Câmara [Elbio Volkweis, reeleito em 2024], que teve envolvimento com muitas ações na época”, afirmou também.

Mesmo com o viés conservador do eleitorado de Sinop, Graciele conseguiu uma das maiores votações entre todos os candidatos a vereador, com 1.882 votos, tornando-se também a mulher mais bem votada para a Câmara Municipal em 2024.

Mas os outros dez candidatos da chapa não alcançaram o coeficiente eleitoral mínimo para fazer valer seus votos. “É muito triste, sim, mas temos de celebrar o trabalho da nossa campanha, que conseguiu um resultado histórico — que nos mantém na luta, porque não podemos parar”, disse a vereadora à Pública.

“Aqui, financiadores dos atos golpistas estão quietinhos, mas quem foi rezar para pneus na BR está à solta, sem medo”, disse a vereadora em seu gabinete (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Para Graciele, sua votação expressiva renova o ímpeto de manter-se ativa, defendendo pautas progressistas, mas o contexto ampliado de Sinop segue alinhado ao bolsonarismo. “Tudo que ele [Jair Bolsonaro] representa ‘colou’ muito bem aqui: negacionismo em relação à vacina, o trato horroroso com a imprensa, com as mulheres, com pessoas negras, tudo isso ecoa muito aqui, na vida prática de muitas pessoas”, afirmou.

“As lideranças do agro aqui têm muito dessas práticas, inclusive com denúncias de trabalho análogo à escravidão, uso de veneno [agrotóxico] dentro da cidade. Vemos um desrespeito sistemático ao ser humano, à vida e aos direitos humanos no discurso e na prática de grandes fazendeiros”, disse a vereadora.

Advogado se elege vereador à base de ostentação e polêmicas

Se a esquerda perdeu sua única representante na Câmara de Sinop, a direita avançou e dominou a “renovação” na Casa. Entre os oito novos vereadores eleitos em 2024, aparece o advogado Marcos Vinicius Borges, o Dr. Marcos Vinicius (PSDB) — mais conhecido como “advogado ostentação”, que desfilava em um carro de luxo pedindo votos sob a escolta de um motoclube na véspera da eleição. Ele se elegeu com menos votos que Graciele dos Santos: 1.261 votos, pois sua chapa majoritária alcançou o coeficiente eleitoral.

A ficha de Marcos Vinicius Borges é cheia de polêmicas, incluindo uma tentativa de assassinato sofrida dentro do seu escritório em Sinop. Ele já foi condenado por estelionato contra clientes, caso no qual alega inocência; teve sua licença da OAB suspensa por um mês, graças à sua ostentação nas redes, e defendeu um homem envolvido numa chacina de sete pessoas — incluindo uma garota de 12 anos — em um bar de Sinop, um crime motivado por uma partida de sinuca, retirando-se da defesa do acusado pouco antes do julgamento do caso.

(Foto: Reprodução/Instagram)

Na campanha para vereador, Vinicius Borges usou lemas típicos da direita, como a cruzada “anticorrupção”, e focou no eleitorado jovem da cidade, como observado in loco pela Pública. Ele percorreu bares frequentados pela juventude universitária de classe média e alta, fazendo panfletagem nos locais atulhados de jovens.

“Eu não uso um centavo de dinheiro público na minha campanha! Vou trabalhar contra a corrupção, já denunciei os ‘esquemas’ na saúde do município — tá tudo na rede”, disse o candidato à Pública, durante uma de suas panfletagens em Sinop.

A prestação de contas de Borges ao TSE, porém, mostra que ele usou verba do fundo eleitoral em sua módica campanha. Ao todo, o candidato arrecadou R$ 3,2 mil para concorrer a uma vaga na Câmara, incluindo recursos do diretório municipal do PSDB. Indagado pela reportagem sobre quais seriam os “esquemas na saúde” de Sinop, Borges não se aprofundou — “Tá tudo lá no meu ‘insta’, me segue lá!”, disse.

Como um típico influenciador digital, ele se aproveitou das redes, integrando a chapa derrotada para a prefeitura de Sinop de Mirtes Eni Leitzke Grotta, a Mirtes da Transterra (Novo), cujo marido e filha foram denunciados por participação da tentativa de golpe no dia 8 de janeiro em Brasília (DF).

Um dos principais apoiadores da candidata é o ruralista Antônio Galvan, ex-diretor da Aprosoja na mira do STF por envolvimento em atos antidemocráticos durante o governo Bolsonaro.

A Pública perguntou a Mirtes e Galvan, que estavam lado a lado durante uma carreata na véspera da eleição, sobre quais eram os planos ambientais da chapa, considerando-se o avanço da destruição ligada ao agronegócio na região. Tanto ela quanto Galvan disseram apenas que era “um dia de celebrar a candidatura”.

Já outros apoiadores de Mirtes aderiram ao sinal do M, tanto pelo nome da candidata quanto por referência ao candidato derrotado em São Paulo Pablo Marçal (PRTB), outro que usou e abusou das redes sociais para conquistar votos.

Por trás da riqueza do agro, uma ocupação sem nome

Acesso improvisado a água e energia, sem perspectiva de regularização nem nome. A ocupação no Jardim Araguaia não aparece na imagem “oficial” de Sinop (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Longe da ostentação e da fama de riqueza de Sinop, existe uma pequena ocupação urbana ao lado do Jardim Araguaia, nas margens da sede municipal, que passou discreta pelo período eleitoral, esquecida pelos candidatos da cidade.

Sem nome, a favela de três ruas de chão batido é o lar de famílias de trabalhadores subalternos no comércio local, que não ganham o suficiente para alugar imóveis mais bem estruturados em outros bairros de Sinop.

“Assim, nosso problema aqui é a terra, né? Tudo é muito caro aqui, não tem condição de trabalhar só para pagar um aluguel de R$ 1,5 mil. É a nossa alternativa, tentar conquistar um pedacinho de terra”, disse à Pública o armador de vigas Jaílson Severino dos Santos.

Baiano de Feira de Santana, ele é mais um dos migrantes que se mudaram para Sinop em busca de melhores oportunidades de emprego. Como em outros municípios na rota da BR-163, a cidade atrai migrantes nordestinos devido à fama de local rico, com diversas empresas do agronegócio e também da construção civil.

“Do que eu posso dizer, não veio nenhum candidato pedir voto pra gente aqui, não. A gente sabe que nessa época sempre eles andam pela cidade prometendo as coisas, mas aqui ninguém veio me pedir voto… aqui a gente fortalece uns aos outros, sabe?”, afirmou Santos.

Ele disse ainda que não votaria porque estava “ocupado”, trabalhando em sua folga por melhorias em sua casa. “Eu sempre justifico, melhor aproveitar o dia fazendo as minhas coisas aqui, logo começam as chuvas… já perdi tudo aqui outras vezes, a água invade mesmo, não é fácil. Mas a gente recomeça, não tem outro jeito. O bom aqui da comunidade é que a gente é unido, do asfalto pra lá não dão muita atenção pra gente… eu até entendo o lado deles, nós estamos free, de graça, mas é o que a gente pode ter agora”, disse.

Família: “O bom aqui da comunidade é que a gente é unido, do asfalto pra lá não dão muita atenção pra gente” (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Na rua que divide a ocupação do bairro Jardim Araguaia, Antônio Francisco, maranhense que vive em Sinop há sete anos, tinha uma visão levemente diferente daquela de Santos.

“A gente foi votar, sim, votei num vereador que esteve aqui, mais por consideração mesmo, porque ele veio, não porque a gente imagina que vai fazer alguma coisa pela gente. Pra prefeito, nós votamos no que já tava… só pra gente não votar em branco mesmo”, disse, em referência ao candidato reeleito com 50,7 mil votos, pouco mais de 68% dos votos válidos naquele dia — o megaempresário e fazendeiro Roberto Dorner (PL).

Francisco trabalha há quatro anos no ramo da construção civil em Sinop e vive sob a expectativa de regularização fundiária da ocupação, inclusive por ter feito melhorias em sua casa no local. “Muitos moram aqui não é porque quer, é porque não têm outra opção. Já morei de aluguel, mas, com quatro crianças, medicação, a comida da família, fica pesado”, disse ao lado de sua esposa, Cleide.

Francisco e sua família vivem em uma das ruas da ocupação que faz divisa com o asfalto (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Poucos metros separam duas realidades conflitantes (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

“Já teve oportunidade de oferecerem coisa melhor pra gente, mas teve problema, não informaram direito nossa opção, sabe? Mas a gente sabe o que pode acontecer — que nem as outras ocupações mais ali pra cima, que o pessoal tirou um tempo atrás. Morar aqui é que nem comprar um bilhete da Mega-Sena: se ganhar, tá bom, mas se não ganhar a gente já sabe do risco”, afirmou ainda Francisco.

Sinop, terra grilada?

Chama atenção a luta por terras da ocupação vizinha ao Jardim Araguaia, especialmente levando-se em conta a história de Sinop. Fundada em 1974, o nome da cidade é um acrônimo da “colonizadora” Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop) (Foto: João Canizares/Agência Brasil)

Porém, um caso em andamento no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) sugere que a área controlada pelo atual Grupo Sinop à beira da BR-163 seria, na verdade, “fruto de fraude”. O caso veio à tona na região por meio do veículo local GC Notícias, em 2018, que teria tido acesso a um relatório elaborado pela Polícia Federal, ainda nos anos 2000, para checar a procedência de áreas na faixa da BR-163 disputadas pelo grupo com o órgão predecessor do atual Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).

Até os anos 1990, a BR-163 nem sequer era asfaltada (Foto: Divulgação)

Parte da elite local chegou à região em condições inóspitas, devastando Amazônia e Cerrado pelo caminho (Foto: Edu Marcel Ribeiro/CC)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aberta em 1998, a ação segue em curso até hoje, com movimentações recentes. Em fevereiro de 2023, o juiz federal da 1ª Vara Federal Cível e Agrária em Sinop, Ciro José de Andrade Arapiraca, resumiu o caso como um “incidente de falsidade de título dominial”, da parte do Grupo Sinop, que foi “acolhido em primeira instância e confirmado em instâncias superiores”.

Porém, o Grupo Sinop conseguiu uma vitória recente no caso, por meio de uma liminar que cancelou a “nulidade da matrícula 1717”, o registro que deu origem à cidade e que mantém parte do controle territorial do município com a empresa. A informação consta na decisão mais recente da ação em andamento na Vara Federal de Sinop, assinada pelo mesmo juiz federal Ciro José de Andrade Arapiraca em 25 de julho de 2024.

A Pública entrou em contato com o Grupo Sinop, para saber sua posição diante da suspeita de grilagem a partir do caso em curso na Justiça Federal, mas não teve retorno até o fechamento. Caso haja, o texto será atualizado.

 

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