ICL Notícias

Você, assim como eu, já deve ter ouvido falar de Carolina Maria de Jesus. Talvez até já tenha lido o livro mais vendido da autora, “Quarto de despejo, diário de uma favelada”, e se impressionado com a capacidade literária dessa mulher.

Negra, nascida em 1914, em Sacramento, zona rural de Minas Gerais, Carolina morava em uma favela paulistana e não tinha nem o primeiro grau completo. Ela criava os filhos vendendo o que conseguia catar de ferro, papel e recicláveis — que naquela época ainda não tinham esse nome.

Li “Quarto de despejo” duas vezes. A minha cópia é toda marcada a lápis e tem vários pedacinhos de papel separando páginas que acho imperdíveis. Fiquei surpresa quando descobri, no último domingo, dia 13, que o livro que tenho na minha estante apresenta apenas cerca de 15% do que ela escreveu nos diários que serviram de base para a publicação.

O livro, lançado em 1960, foi um sucesso imediato. Vendeu 10 mil exemplares na primeira semana. Teve três tiragens de cara, somando 100 mil cópias, e foi traduzido em pelo menos 13 idiomas.

Carolina Maria de Jesus

(Foto: Arquivo Nacional)

Carolina também escrevia letras de música

A pesquisadora Verônica Flores, doutora em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia, mergulhou nos diários de Carolina para escrever uma tese de doutorado. Romancista e cantora, Carolina também escrevia poemas e letras de música.

No dia 13, Verônica participou de um encontro em Nova Iorque sobre “Quarto de despejo”, realizado pelo grupo Mulheres da Resistência (MRE), que promove, esta semana, entre os dias 15 e 18, uma série de eventos sobre a obra de Carolina nas universidades de Columbia e Georgetown, nos Estados Unidos, além de um encontro seguido de debate no The People’s Forum.

A conversa com a Dra. Verônica, via Zoom, durou quatro horas. Ninguém queria desligar, sair ou mudar de assunto porque foram muitas as descobertas. A pesquisadora baiana mostrou algumas comparações entre o conteúdo dos diários de Carolina e o que foi parar no livro. É estarrecedor. Todas as passagens poéticas da autora foram suprimidas. Várias reflexões políticas, sociológicas e econômicas também ficaram de fora.

Apenas 15,9% dos diários de Carolina estão em livro

Carolina foi “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas, em 1958, quando ele fazia uma reportagem na Favela do Canindé, desocupada em 1961 para a construção da Marginal Tietê.

Ele ficou impressionado com a mulher favelada que tinha cadernos no armário da cozinha e diários descrevendo a vida naquele lugar. Durante muito tempo ele foi chamado de autor de “Quarto de despejo” por ter editado os escritos de Carolina para o volume. Mas ela produziu muito mais do que ele publicou. E tem outros livros que não alcançaram o mesmo sucesso de público.

A pesquisa da Doutora Verônica mostra que apenas cerca de 15,9% do conteúdo dos diários de Carolina foram usados no livro “Quarto de despejo”. Mas ela comparou os dois textos e marcou as alterações que o jornalista, ou a editora, fizeram no original.

Além de suprimir muito conteúdo, palavras mais eruditas foram substituídas por outras mais populares. A forma de escrever de Carolina, usando “tirou-me”, “levou-me” também foram substituídos por formas menos rebuscadas. É como se quisessem dizer que a erudição da autora não combinava com a vida dura e o lugar humilde onde ela morava.

Leia trechos inéditos da obra de Carolina Maria de Jesus

A pesquisadora Verônica Flôr nasceu e cresceu na periferia de Salvador, filha de um mestre de obras e de uma técnica em enfermagem. “Meu pai me dizia que só podia me dar os estudos”, conta. E um professor da universidade disse à Verônica, depois de visitar o museu Afro-brasileiro em São Paulo e ver alguns cadernos de Carolina, que Verônica era a pessoa certa para pesquisar os escritos da autora.

“Li aquelas 316 páginas e fiquei encantada. Achava que era só aquilo. Mas era apenas um mês e meio do diário dela. Quando comecei a desbravar, descobri que tinha mais de 10 mil folhas distribuídas entre diários, poemas, cartas e romances”, conta.

Verônica cedeu ao ICL Notícias um trecho dos diários de Carolina que nunca entrou no livro “Quarto de despejo”. Nele, a autora reflete a respeito da tarefa do escritor e o significado de deixar uma obra pronta. Deixa claro que leu clássicos, que tinha conhecimento histórico. E isso é frequentemente eliminado na edição de “Quarto de despejo”.

O trecho sobre o 4 de junho é inédito. A pesquisadora está trabalhando nele para um artigo acadêmico que deve ser publicado no começo do ano que vem.

04 de junho de 1958:

“O escritor deve pensar em um livro e escrever. Vai escrevendo banalidade até escrever uma obra digna de menção honrosa. Quem escreve não deve ter preguiça. Deve relatar na escrita tudo o que sente. Ser sincero”.

“Os livros registram e as gerações vindouras vão tomando conhecimento. Por isso é melhor sermos bons. Creio que o jovem que quer escrever não vai encontrar obstáculo igual a mim que sou pobre, preta e feia. Ele tem um trator que lhe abre as estradas. — O dinheiro! Mas eu tenho lido tantas banalidades que os ricos escrevem. Quem é rico pensa e concretiza o seu sonho. Para os escritores ricos, que pagam os nossos editores, não há falta de papel. Só há falta de papel para o pobre, para o preto. Negro não deve ter vocação. Vocação de negro é beber pinga e lavar roupas da sinhá.”

“Eu gosto muito de livros. Quando alguém me diz que vai escrever, o futuro escritor fica morando no meu cérebro. Se eu fosse rica, eu já teria escrito muitos livros porque o dinheiro afasta os abrolhos.”

“Eu tinha vindo do interior, era caipira, não sabia o que queria dizer poetisa. A única coisa que eu recordo, quando me disseram que eu era poetisa, é que o meu coração batia dentro do meu peito parecendo castanholas. Quando alguém me olhava e dizia: ela é poetisa!, eu transpirava e ficava pensando — poetisa…”.

“Eu estava louca de vontade de andar de bonde. Mas eu não sabia como havia de fazer para andar de bonde. Pensava: deve ser gostoso andar naquilo! Parava em qualquer lugar e dava o sinal. O bonde passava. — E eu gritava: Vocês não param o bonde para mim porque eu sou preta? Pensam que eu não vou pagar esta porcaria? Eu tenho dinheiro! Olha o dinheiro aqui!”.

“Não pensei que eu ia degradar até ser atirada no quarto de despejo. E comer as coisas do lixo. (…) Cheguei na favela. João já havia retornado da feira. Comprei 1 quilo e meio de arroz e meio de feijão. O João foi comprar meio litro de óleo. Sobrou 50 centavos. Amanhã não vai ter café. Preciso anunciar com antecedência para não haver choro das crianças.”

Pesquisadora: ‘existe muito mais de Carolina para conhecer’

O mergulho de Verônica e a comparação detalhada mostram, diz ela, que as mudanças não atendem ao projeto apresentado pela Carolina. “Existe uma negação intelectual dela. Naquela época não existiam as marcações para perceber e colocar a autoria negra em lugar de prestígio. Até hoje existe isso, alguns entraves de quem domina a Literatura, os espaços de poder”, afirma.

Nem por isso ela condena o trabalho do jornalista Audálio Dantas, com quem conversou pouco antes dele morrer, em 2018. “Ele foi uma ponte entre Carolina e o mundo”, diz Verônica. Trouxe à tona um conteúdo que talvez se perdesse para sempre se o jornalista não tivesse encontrado a escritora e se interessado pelo trabalho dela.

Hoje, o Brasil e o mundo conhecem um pouco de Carolina, mas existe muito mais para se conhecer. “Ele sabia exatamente a pesquisa que eu ia fazer e não se mostrou nada contra”, disse.

Na opinião de Luciane Simões Medeiros, o conjunto da obra da escritora tem uma força e uma importância histórica tão grandes que a Biblioteca Nacional vai apresentar a candidatura do acervo de Carolina à categoria de Memória do Mundo da UNESCO em 2027, ano que marca meio século da morte da escritora.

Luciane é chefe da seção de manuscritos da Coordenação de Acervo Especial da Fundação Biblioteca Nacional. Ela disse ao ICL Notícias que a instituição já está trabalhando e conversando com pesquisadores e especialistas para apresentar a candidatura da obra de Carolina.

“Em 2011, a Biblioteca Nacional recebeu 14 cadernos de Carolina que estavam com o Audálio Dantas”, disse. Luciane também destacou que o Brasil só tem uma coleção na Memória do Mundo da UNESCO: a coleção de Dom Pedro II, o imperador. Seria no mínimo interessante ter, ao lado desta coleção, a obra da escritora negra, favelada, que desnudou os conflitos sociais, raciais, econômicos e políticos do Brasil ao observar, descrever e refletir sobre a situação em que vivia.

Carolina deixou carta com pedidos antes de morrer

Carolina Maria de Jesus teve três filhos. Vera Eunice de Jesus Lima é hoje a única dos três que está viva. Do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, embarcando para Nova Iorque na noite de domingo, para participar dos eventos sobre a mãe, ela conversou com o ICL Notícias e disse que a mãe chegou a receber um convite para ir aos Estados Unidos, mas não viajou. Ela ainda se lembra que o dinheiro dos direitos autorais da Alemanha e dos Estados Unidos é que ajudavam a sobrevivência da família.

Vera Eunice nunca foi aos Estados Unidos e confessou estar um pouco nervosa com as palestras das quais vai participar em duas universidades por lá. Mas fica feliz de ver o nome da mãe em alta novamente, com um filme a caminho, com direção de Jefferson De e a atriz Maria Gal no papel da escritora.

“Agora”, diz Vera Eunice, “acho que a Carolina morreu mas a situação é a mesma. Se ela se levantasse hoje para escrever um livro, seria o “Quarto de despejo” porque a situação é a mesma. A única mudança é o empoderamento do negro que sabe, e ela já tinha previsto isso, que só se aprimora se começar a estudar. O negro está estudando mais”.

Das memórias dos tempos da vida difícil, ela diz sem rodeios: “quando tinha comida, a gente comia. Quando não tinha, a gente cantava. Mas estávamos juntos”. Ela também contou que a mãe fez vários pedidos antes de morrer e deixou tudo em uma carta. Entre os desejos, estava o de que a obra dela fosse propagada. “É isso que eu estou fazendo, por isso estou indo para os EUA”, disse Vera Eunice.

 

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