Foi em outubro do ano passado que comecei a escrever as tortas e históricas linhas desta coluna. Um ano de escritos sobre História, lutas, sonhos, sangue, América do Sul, mas também África e Atlântico Sul. Uma tentativa constante de narrar as muitas camadas de tempo do autoritarismo do Brasil, uma história marcada pela escravidão estrutural, golpes de Estado e de todo tipo de sofisticada exclusão. Contudo, era preciso que eu conseguisse trazer tais questões sem perder a “pena da galhofa”, no dizer do delirante Brás Cubas, sem perder o lirismo sofrente de quem vive a realidade cruel de uma metrópole alucinante como São Paulo.
Em muita medida, os textos-crônicas que escrevi para as páginas virtuais do jovem e rebelde portal do ICL-Notícias, são também um retrato-relato-desabafo de um professor brasileiro, historiador, narrando o “fim do mundo como a gente conhece.” O tom “autoral” nada mais foi (é) que uma síntese da vida e da morte na grande cidade, exatamente no momento em que, após quase 10 anos em Campinas, voltei a morar no centro de São Paulo. E voltei, de alguma maneira, achando que era a cidade de 10 anos antes… caí do cavalo. Seja pelos efeitos pós-pandêmicos e bolsonaristas, seja pelo efeito da brutal concentração de renda e especulação imobiliária sem fim, o Centro (que também é periferia) é uma dessas experiências sínteses da modernidade urbana. O mais alto luxo convive com a mais torpe miséria.
Claro, sabemos os que vivem e vivemos nas diversas periferias do Brasil, que tal condição urbana é a regra da história brasileira. Contudo, faço aqui o sobrevoo do cronista. Analisemos algumas camadas. A primeira camada é a estrutural, as ruas do Centro concentram a história inteira do Brasil: os moradores de rua são quase que invariavelmente pretos e pardos. Não é difícil sobrepor os desenhos do pintor e desenhista francês Debret — do século 19 da Escravidão — aos retratos dos jornais de hoje. Para além do exército de neo-escravizados, lixos revirados, pedidos desesperados, meninos alucinados, um grande brejo da cruz. E não nos iludamos, a Cracolândia (agora dispersa por quase todo o Centro expandido), é só a ponta de lança de uma alucinação constante que toma conta da metrópole. A segunda é a camada dos serviços, em geral marcada pela presença de pretos e pardos nos serviços de limpeza e cuidado e por também por brancos pobres em serviços de mediação entre o dono do produto e o consumidor final. Vale para o garçom, vale para a caixa da padaria.
Há uma terceira camada, que se imbrica na segunda, que envolve pequenos empreendedores, esfolados pelos impostos, precarizados com um PJ e numa corda bamba, na roleta russa: quais boletos vou pagar? Alguns deles acreditam no Marçal, odeiam o Boulos e toleram muito bem o Nunes. Junto a essa camada, mas descolada dela por ganhar mais de 5 mil por mês (lembremos que 90% dos brasileiros ganham até 3.500 reais por mês), uma quarta camada, acima da maioria, aqueles que ganham entre mais ou menos 7 e 15 mil cruzeiros, mas não sendo herdeiros, resta a eles negar a luta de classes e fingir que está tudo muito bem, de preferência tomando um café coado caro pacas e fazendo média (e medo) com o chefe imediato. Um delírio, um grande delírio. E acima desses valores, para a média brasileira, já é um assinte, dá até pra fingir que é rico. Mas rico mesmo, ora, ora, nem 1%.
Como pesquisador-cronista da metrópole, me interessa aqui ouvir os sons (desesperados) da cidade. Ouvir é diagnosticar também a sua miséria: obras sem fim, escavadeiras, britadeiras, sirenes vigiando e punindo, gritos doloridos, fome, furtos, roubos, assaltos. A “Gangue da bike” é o Rei, Freud a Rainha. Cinismo, muito cinismo. Ao mesmo tempo, a partir da quarta, quinta-feira, o tráfego pesado de veículos aumenta, os gritos embriagados de quem vive uma rotina extenuante de mais de 40 horas semanais explodem em desespero (e busca por prazer), na tentativa de recuperar o tempo perdido ou roubado pelo Capital. Desespero, muito desespero. As sirenes aumentam o volume, os gritos aumentam, as alucinações aumentam. A classe média povoa os bares gentrificados, preços altíssimos por comidas mal preparadas e bebidas duvidosas. A busca por excitantes explode de vez na sexta-feira, gentes tresloucadas perambulam pela cidade, se acabam, para se jogar num domingo entorpecido, prenúncio da angústia por uma mudança que não vem.
Segunda-feira, a Escola reitera o Capital, o PJ reitera a forma mercadoria, seu lazer é mercadoria, sua vida é mercadoria, serviços básicos privatizados (pela dupla Freitas-Nunes) fazem de você um corpo-mercadoria. Nada do que você vê (e faz) é capaz de rechaçar as mentiras da forma mercadoria. E a metrópole continua, mais imponente e sombria que Gotham, mais delinquente que o Batman, mais sóbria que o Coringa, mais solitária, individualista e endividada que um paulistano, esse grande vilão de novela brasileira e filme mexicano. Um ano de coluna, narrar e dizer o que se vive e o que se pensa é privilégio de poucos. Que alucinação! Que delírio! Que loucura, bicho!
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