Existe um fantasma rondando o ar. É o fantasma do “identitarismo” que vive precisamente de sua polissemia. Muito se discute se o identitarismo prejudicou ou não as esquerdas nas últimas eleições, mas ninguém costuma explicitar nada quando fala sobre “identitarismo”. Assim, temos o verdadeiro debate de loucos, cada um falando sobre a sua própria concepção na sua cabeça e, ao utilizar o mesmo “nome”, todos falam de coisas muito distintas parecendo que estão falando da mesma coisa. O nome é polissêmico e confuso, como o senso comum da realidade social, o conceito é unívoco porque reconstrói a realidade de modo coerente em pensamento. Então vamos aos conceitos.
Existe um tipo de identitarismo, que gostaria de chamar de “identitarismo neoliberal” que é, efetivamente, um veneno para as lutas sociais. É àquele que se baseia na ascensão individual dos membros mais aptos dos segmentos oprimidos, ou seja, cerca de, no máximo, 1% das mulheres ou negros, os quais comparativamente tiveram mais acesso ao capital cultural, deixando os 99% que ficam de fora, com o esgoto a céu aberto, em posição ainda muito pior que antes, já que são forçados a perceber sua condição como culpa própria. E culpar a vítima é o caminho de ouro de toda forma de dominação social. Por conta disso a meritocracia é a ideologia dominante do capitalismo.
Isso acontece porque o identitarismo neoliberal foi inventado pelo Partido Democrata americano, que havia aderido ao rentismo do capitalismo financeiro nos anos 1990, mas não queria renunciar ao discurso da emancipação e proteção dos mais desfavorecidos que havia monopolizado desde o “New Deal” de Roosevelt. No entanto, como o capitalismo financeiro deixa todo mundo mais pobre e produz meia dúzia de super-ricos e, além disso, a ascensão individual dos indivíduos mais aptos nunca combateu a desigualdade de oportunidades em lugar nenhum, o que temos é um discurso que une, objetivamente, 1% da militância e o 1% dos mais ricos. Temas como “representatividade”, quando alguém do 1% diz estar “representando” os outros 99%, quando representa, no máximo, a si mesmo, faz parte deste engodo.
Os bancos e a Rede Globo, que produzem e legitimam o saque organizado de todos pelo rentismo, podem mostrar, agora, nas suas propagandas, como efetivamente o fazem, alguns sortudos negros e tirar onda que são democráticos e progressistas. Para quem continua na sarjeta, a mensagem do banco chega mais ou menos assim: camarada, olha aqui, 50% do meu pessoal é preto, pessoal que se esforçou para estar aqui, você continua aí por algum problema seu, burrice ou preguiça. Esta é a melhor legitimação que a meritocracia poderia almejar. Eu me pergunto: qual, afinal, é a dificuldade de se compreender esta cilada como uma monstruosa e gigantesca empulhação?
De resto, não existe tradição mais brasileira do que a ascensão individual dos membros mais aptos das classes populares mestiças e pretas. Isso sempre ocorreu nos últimos 500 anos desde o capitão do mato. Este é o processo clássico de “embranquecimento” brasileiro, que não visa mudar a cor da pele das pessoas, mas, sim, fazer o oprimido incorporar os valores de seus algozes brancos e ricos como se fossem os seus. Deste modo, o identitarismo neoliberal é tão venenoso quanto o nosso processo de “embranquecimento” de 500 anos. Temos terreno fértil e já cultivado para ele.
Qual a saída para isso? Ora, defender um feminismo e uma luta antirracista dos 99% que não chegam a lugar nenhum porque suas condições de vida e de classe não deixam. Família desestruturada, escola precária e analfabetismo funcional fazem o resto. As cotas universalistas que abrangem todos os negros e todas as mulheres são exemplos de política “identitária” correta, já que não aplaudem a meritocracia dominante, mas a denunciam. Além disso, as cotas e políticas do tipo têm que ser relacionadas aos direitos universais dos quais foram privados precisamente os segmentos oprimidos. Este é um debate urgente e que precisa ser mais bem compreendido. Saber do que exatamente estamos falando e evitar o debate de loucos é o passo inicial.
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