Por Leonardo Fernandes — Brasil de Fato
Os privilégios tributários dos quais gozam os produtores rurais que utilizam agrotóxicos foram objeto de debate em uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta terça-feira (5). A sessão foi convocada pelo ministro Edson Fachin, que é o relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que questiona regras estabelecidas pelo Convênio 100/1997 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reduzem em 60% a base de cálculo do ICMS sobre agrotóxicos.
A ação também discute aspectos da legislação tributária que estabelecem alíquota zero do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para alguns desses produtos, considerados nocivos à saúde.
Chamou a atenção a posição do Ministério da Agricultura, alinhado à defesa realizada pela Confederação Nacional da Agropecuária (CNA) e contrário à posição majoritária do governo. “Os defensivos são fundamentais na nossa produção tropical. Nós somos um país eminentemente tropical na nossa agricultura (…) São poucas ofertas de produto e muitos produtores consumidores. Qualquer alteração de custos na matéria-prima implicaria no repasse para os produtores”, declarou Sílvio Farnese, diretor do Departamento de Análise Econômica de Políticas Públicas do Mapa.
“A participação dos defensivos no custo variável das lavouras gira em torno de 35%. Digo isso para mostrar que tem um papel relevante na formação de custos para o produtor e, consequentemente, na formação de preços para os nossos consumidores, para o mercado internacional”, argumentou o funcionário do Mapa, que apresentou um mapa de 2016 para afirmar, falsamente, que o Brasil ocupava “apenas” a sétima posição no ranking dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo.
A posição do Mapa foi seguida pelos representantes da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja).
José Victor Torres Alves Costa, que é coordenador geral de Agrotóxicos e Afins do Ministério da Agricultura, tratou de naturalizar o modelo agrícola baseado no uso de insumos químicos. “Ao produtor rural, independente do seu sistema de cultivo, agroecológico, orgânico, convencional, de fruta, grão, café, soja, milho, cacau, onde se produz alimentos, se têm ocorrência de pragas agrícolas, seja no Brasil, seja nos países de maior índice de desenvolvimento humano desse mundo. (…) E o produtor rural só tem uma decisão a tomar: usar esse insumo ou não, sob pena de redução da capacidade produtiva de alimentos daquele sistema de cultivo”, argumentou.
A posição do Mapa foi contrastada pelos representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA). “A cada um dólar gasto no Brasil, a gente tem 1,3 dólares de custos externos pela intoxicação”, pontuou o secretário nacional Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental do MMA, Adalberto Maluf. Ele afirmou ainda que os tipos de cânceres relacionados à exposição por agrotóxicos no país geram um custo anual de R$ 43 bilhões para o sistema de saúde pública, com impacto direito e indireto ao meio ambiente e à biodiversidade. “A sociedade brasileira como um todo paga essa conta”, analisou.
Maluf chamou a atenção para o aumento de 58% da comercialização de agrotóxicos no Brasil entre 2009 e 2022, e os impactos no meio ambiente. “O que a gente vê pelos dados de classificação de periculosidade ambiental do Ibama é que a maior parte dos agrotóxicos aprovados é altamente perigosa ao meio ambiente. Entre 2016 e 2020, a gente teve uma média de 12 altamente perigosos aprovados por ano. Os muito perigosos foram mais de 1.500 produtos aprovados desde que a lei começou, lá em 2016”, destacou.
Thaiane Fábio, diretora de Qualidade Ambiental do MMA, citou diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário que preveem a redução ou eliminação do uso de agrotóxicos, na contramão do que vem sendo legislado pelo Congresso Nacional. “Enquanto é signatário de convenções internacionais que visam proteger o ambiente e a saúde pública contra as substâncias químicas nocivas, o país ainda mantém isenções fiscais para produtos com efeitos reconhecidamente danosos. Tem alíquotas reduzidas para esses produtos, criando o cenário no qual substâncias prejudiciais à saúde e meio ambiente são beneficiadas pelo regime tributário, em contradição com os compromissos internacionais já estabelecidos.”
Representando o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Alexandre Furtado Scapelli Ferreira, coordenador nacional de fiscalização rural do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho, também mencionou acordos firmados pelo Brasil no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que visam a garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável. Scapelli destacou ainda a baixa capacidade das instituições de Estado para fiscalizar de modo efetivo as condições dos trabalhadores que lidam com as substâncias químicas, e o altíssimo nível de subnotificação nos casos de intoxicação por agrotóxicos. Segundo ele, para cada caso notificado, outros 50 deixaram de ser registrados.
“Na prática, o que a gente encontra são trabalhadores que não entendem quais são os riscos de trabalho que eles estão correndo e que não sabem lidar adequadamente com os equipamentos de proteção ou com os próprios equipamentos de aplicação dos agrotóxicos”, declarou o servidor. Ele também mencionou dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde que mostram que o país registrou 70.514 casos de intoxicação por insumos químicos entre 2007 e 2023, dos quais, 2.556 óbitos. Apenas em relação a intoxicações no exercício do trabalho, foram mais de 29 mil casos.
Sociedade civil e os agrotóxicos
Paula Coradi, presidente do PSOL, partido autor da ação, iniciou os debates apresentando os argumentos pelos quais o partido pede a suspensão das normas. “Os convênios 100/97, ao reduzir em 60% a base de cálculo do ICMS de determinados agrotóxicos, e o decreto 7660/2011, ao conceder isenção total de impostos sobre produtos industrializados na produção dessas substâncias, facilitam o acesso a produtos com agrotóxicos, causando graves impactos ao meio ambiente e a saúde”, declarou. “O cerne da presente ação, contudo, não reside na utilização dessas substâncias em si, mas na inadmissível renúncia fiscal promovida pelo Estado para incentivar a sua utilização. Esse estímulo carece de justificativa econômica”, completou Coradi.
Para Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, é positiva a realização da audiência, para que os ministros possam deliberar o quanto antes sobre a constitucionalidade da isenção fiscal aplicada sobre esses produtos. “A gente espera que realmente haja uma sensibilização no STF e que, no mínimo, o STF siga pelo caminho intermediário de exigir a avaliação das políticas de isenção de impostos”, declarou.
Por sua vez, Kátia Isaguirre, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná, contradisse o argumento comumente utilizado pelos defensores do uso de agrotóxicos de que o fim das isenções representaria aumento no preço dos alimentos. “Os dados do IBGE mostram que a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos, enquanto ocupa apenas 30% da área agrária”, destacou.
O argumento foi seguido pela representante do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a professora Marijane Vieira Lisboa. “Quem mais emprega agrotóxicos nesse país e é beneficiado por essas desonerações é um grupo bastante reduzido de produtores. Porém, muito grandes, detentores de grandes propriedades e que usam tais agrotóxicos adquiridos com esses descontos para produzir soja, milho, algodão e açúcar destinados à exportação”, explicou.
“Eu gostaria de dizer que o agronegócio é um setor consolidado, que afirma ter um PIB de passa dos R$ 2 trilhões e, portanto, não necessita de isenções fiscais. A regulação de preços dos alimentos deve ser feita sobre os alimentos. É importante isentar quem consome arroz, quem consome feijão, a alimentação básica brasileira. Faça-se aos produtos, não ao abuso de agrotóxicos usados para a produção desses produtos”, finalizou.
Congresso Nacional
Participante da audiência pública no STF, a deputada federal Célia Xakriabá destacou os impactos do uso extensivo de agrotóxicos na produção agrícola, sobretudo para as populações indígenas. “O genocídio por agrotóxicos não é somente uma exclusividade nas populações indígenas, mas é muito mais acentuada. No Mato Grosso do Sul, já estamos vivenciando esse processo de deslocamento por agrotóxicos. Isso é um fato que não tem em outro lugar”, denunciou a parlamentar, que ainda citou o aumento do suicídio em comunidades atingidas pela pulverização de insumos químicos.
A parlamentar destacou a contradição da bancada ruralista no Congresso, que além dos retrocessos ambientais, se posiciona contra políticas de autonomia das mulheres sobre seus corpos, à medida que fomentam um modelo de agricultura que tem significado a perda de vidas. “Muito me admira que as mesmas pessoas que estão no Congresso Nacional votando contra a pauta do aborto, nunca questionaram porque mais de 40 milhões de mulheres já foram afetadas por abortos causados pela contaminação de agrotóxicos”, questionou Xakriabá, que ainda pediu atenção ao lobby do agronegócio sobre o projeto de reforma tributária, para impedir o imposto seletivo sobre os insumos químicos de alto poder de contaminação.
“Não é uma resposta para a esquerda ou para a direita. A questão tributária, da taxação do agronegócio, é uma resposta para a humanidade, para o consumidor”, declarou.
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