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Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

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Democracias morrem

Trump volta ao poder tendo no currículo a promoção do caos.
07/11/2024 | 06h39

Acordamos nesta quarta-feira (06) com a notícia que temíamos na noite anterior: o republicano Donald Trump venceu as eleições e se tornará novamente presidente dos Estados Unidos.

Como na campanha eleitoral de 2016, também em 2024 Trump conseguiu manipular a raiva do eleitorado e transformar sentimentos em votos.

Compartilho aqui na coluna algumas notas que escrevi ao folhear o livro “Como as democracias morrem”. [1]

Outsiders chegaram ao poder não só por conta dos seus talentos, mas também pela negligência do establishment político, que, diante dos sinais, não fecharam as portas. Isto é, o institucionalismo vigente não deu conta de novas realidades políticas.

Durante a campanha eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, e de Jair Balsonaro no Brasil, em 2018, a percepção de recessão democrática se intensificou.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt desnaturalizam a concepção de “América Democrática”. O estudo da cultura política norte-americana leva à conclusão de que os norte-americanos têm uma veia autoritária.

Os partidos políticos são a proteção contra líderes autoritários, demagogos e aventureiros. Daí a forte ênfase do livro no institucionalismo.

Se os sinais eram tão evidentes que o candidato Donald Trump não tinha apreço pelas garantias dos direitos constitucionais nem pelas normas democráticas, como pôde a liderança do Partido Republicano deixá-lo ir tão longe?

Mesmo com todos os alarmes, o establishment político não foi capaz de construir contenções para proteger as instituições democráticas. Colocaram o eleitoral à frente da ordem democrática.

Como autocratas minam sutilmente a democracia?

Cooptação do sistema judiciário e forças policiais. Blindagem dos questionadores e “arma legal” contra os oponentes. Comprar oponentes oferecendo posições públicas ou vantagens. Marginalizar a mídia de oposição. O silenciamento de vozes influentes (empresários, artistas, intelectuais e políticos) por cooptação ou intimidação.

Esquematicamente, governos eleitos no processo democrático e que depois assumem feições autoritárias, utilizam as seguintes estratégias: (1) capturar os árbitros; (2) tirar do jogo importantes adversários; (3) reescrever as regras do jogo para desequilibrar a disputa.

Hoje, imagino, ninguém duvida que o retorno do Trump a Casa Branca representa a delegação a um autocrata para reescrever as regras do jogo. O Trump, na versão 2024, soa como uma ameaça ainda maior.

Convencionalmente, a ideia-força das democracias estabelece que os rivais discordam, mas se toleram e concordam no sentido de respeitar as regras institucionais. Tolerância mútua a partir do reconhecimento da legitimidade do rival.

Na presidência nos Estados Unidos, mesmo na ausência de barreiras constitucionais, em regra, os presidentes foram comedidos não ultrapassando suas prerrogativas para governar. Esse fenômeno é representativo do uso e reconhecimento das “regras não escritas”.

O processo de erosão das regras democráticas (escritas e não-escritas) encontra em Trump a sua expressão mais nítida, mas o processo antecede a esse fenômeno.

Os precedentes históricos em que a disputa pelo poder no bipartidarismo estadunidense se dava no ambiente respeitoso aos adversários, mas sobretudo, respeito pelas regras (escritas e não-escritas), foram descontinuados.

Extremismos, polarizações radicais estimulando rupturas e interdição do diálogo. Exercício da política na lógica da ruptura em que o adversário é tratado como inimigo.

Ainda sobre a crescente animosidade na disputa partidária nos Estados Unidos, importante contextualizar a imersão dos cristãos evangélicos a partir do final dos anos 1970. Os dois partidos radicalizaram nas disputas de natureza racial e religiosa. “A intolerância se mostrava politicamente útil” (Ibid, p. 155).

“A democracia norte-americana não é tão excepcional quanto às vezes acreditamos que seja. Não há nada em nossa Constituição nem em nossa cultura que nos imunize contra colapsos democráticos (Ibid, p. 194).”

Embora reivindique a identidade de nação democrática, os Estados Unidos não se diferenciam de outras nações. A democracia não está consolidada, é algo que está sempre adiante e precisa ser buscada. É por isso que podemos falar de avanços e retrocessos democráticos nos Estados Unidos e nos outros países que se dizem democráticos.

O processo de aperfeiçoamento institucional exige vigilância constante e a capacidade de construir acordos em torno de interesses comuns.

Essas ideias são utilizadas para pensar os desafios impostos pela figura política do Trump. Para os autores, o governo Trump representava um retrocesso de severa inflexão das instituições democráticas norte-americanas.

Cogitar um pós-Trump em que a tarefa comum seja a recomposição democrática em duas normas fundamentais: tolerância mútua e reserva institucional.

Infelizmente, a esperança de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt foi adiada.

Trump é uma real ameaça à democracia e os seus eleitores sabem disso.

 

[1] LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

 

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