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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Kamala, Trump e nós… os outros

Ninguém é acidente na história
07/11/2024 | 05h00

Eu, como alguém que vai se encaminhando para aquela idade em que a maioria à volta é mais jovem, sou contemporânea de inúmeras eleições no país mais poderoso do nosso continente. Desde que nasci, um rosto negro e, como poderia dizer um indígena Apache, 10 caras pálidas ocuparam aquela casa também pálida em Washington. Todas masculinas. Donald Trump será o 12º a sentar-se na cadeira e, girando as rodinhas sob elas, poderá decidir sobre a vida e a morte (principalmente a morte) de milhões de pessoas mundo afora.

O revezamento entre vermelhos e azuis naquela residência nunca nos foi favorável. Um norte-americano que ascende ao ponto de conseguir disputar a posse da caneta em cima da mesa do salão oval pensa sobretudo neles e ponto final. Foram democratas os primeiros que incentivaram as quarteladas na América Latina dos anos 60/70, logo, os outros são os outros, mesmo que estes outros estejam muito, muito próximos.

Dado este preâmbulo, é óbvio que há diferenças entre estes grupos e, para quem tem um mínimo de civilidade, não há como não se horrorizar com a agenda de retrocessos à idade média que o grupo vencedor nestas eleições propõe. Quem realmente leu o projeto (e eu li) e não sentiu um arrepio de terror na espinha ou não sabe em que planeta está ou é alguém igualmente monstruoso.

Como bem disse o escritor Robert Jones Jr. em seu artigo na plataforma ‘Witness’, a plantation, ou seja, o sistema colonial, nunca foi embora. Ele apenas se camuflou, se escondeu, se fantasiou de outras coisas dentro de lares, instituições religiosas e de estado. Uma lógica branca, mesmo em países de maioria negra como o nosso. Norte-americanos disseram ao mundo que querem viver em 1619 com as facilidades tecnológicas de 2024 e neste mundo… não há espaço para nenhuma Kamala Harris.

Por mais que o terninho que ela use, sua passabilidade de fenótipos ou sua articulação lhe confiram seriedade, por mais que os grandes astros e estrelas do mundo lhe apoiem, por mais que transpareça mais saúde e juventude que o presidente com o qual compôs a chapa como vice ou que o adversário alaranjado em bronzeamentos artificiais, condenado pela Justiça, com fala e aspectos doentios. Sua figura é “too much” para o norte-americano médio ou os que desejam ser norte-americanos médios.

Kamala é filha de imigrantes, mulher e ainda por cima negra. Ela é o outro muito próximo, mas que precisa ser eliminado também. E aí talvez tenha residido o seu tropeço:  Caminhar esquecendo-se disso. A prova? Sua omissão quanto ao genocídio do outro distante. Escritores às vezes acertam muito e Toni Morrison não ganhou um Prêmio Nobel à toda. Em “A origem dos outros” ela disse “(…) não existem estrangeiros. Existem versões de nós mesmos, muitas delas nós não abraçamos, e da maioria desejamos nos proteger”.

Kamala, Trump, nós… ninguém está onde está por mero acidente. Processos históricos longos movem as peças no tabuleiro e o jogo está em curso. Nada nem de longe acabou, mas esse “game” precisa ser consciente e aqui, observar atentamente estes movimentos pode ajudar a não cair nos mesmos buracos outra vez. Aqui o fosso é ainda mais fundo, pois a precariedade econômica de quem se esquece que é o outro de certa elite, com frequência condena e está condenado à morte.

Não tem outro. É tudo nós nesse planeta… e a nossa pior versão está sem freio, devastando e matando. Por fim, James Baldwin disse “Nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado”.

No Brasil ainda há tempo, mas o cronômetro está ligado.

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