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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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A era de Ricardo III: Trump, Bolsonaro, Musk e tutti quanti

Trump, Musk, Bolsonaro e Milei converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana
12/11/2024 | 06h18

O ômega como alfa

A peça só principia quando a guerra acaba. Amanhã ou depois de amanhã. Na primeira cena de Ricardo III o duque de Gloucester ainda não é rei, muito embora ambicione o título como se não houvesse amanhã, pouco importando os obstáculos que terá de enfrentar.

(No seu caso, tratava-se apenas de levar à morte seus irmãos e sobrinhos, entre outras tantas vilanias. Sem remorso algum — sobretudo.)

A longa e desgastante Guerra das Duas Rosas finalmente conheceu um vencedor. A família York — representada pela rosa branca — derrotou a família Lancaster — simbolizada pela rosa vermelha — depois de 30 anos de conflito intermitente. Tempo de celebração para os vitoriosos, especialmente para o primogênito dos York, que se tornou o rei Eduardo IV. Numa palavra, após os rigores de batalhas sem-fim, a corte se preparava feliz para os excessos das festas.

Isto é, quase todos… E como nem sempre a exceção somente serve para confirmar a regra, o duque de Gloucester, irmão do rei, encontrou motivos em tese incontestáveis para não se unir à euforia generalizada.

Escutemos sua confissão, aliás, nada augustiniana:

 

“(…)                            Eu, no entretanto,

que não nasci para essas travessuras

desportivas, nem para declarar-me

a um espelho amoroso, eu (…)

deformado, incompleto, antes do tempo

lançado ao mundo vivo, apenas feito

pela metade, tão monstruoso e feio

que os cães me ladram, se por eles passo…” [1]

 

De fato, considerando-se a impiedosa autodescrição, o futuro rei Ricardo III não tinha razões para se entusiasmar com os tempos de paz que se anunciavam. Sinuca de bico, beco sem saída: emparedado, o duque de Gloucester anunciou uma decisão que mudou a história da Inglaterra, propiciando o advento da Dinastia Tudor. A sentença é tão cortante quanto surpreendente:

 

“I am determined to prove a villain

And hate the idle pleasures of these days.” [2]

 

A tradução de Carlos Alberto Nunes deixou escapar uma importante novidade do texto no cenário elisabetano ao optar por um vocabulário que se afasta da força do original:

 

“(…)                            determino

conduzir-me qual biltre rematado

e odiar os vãos prazeres de nossa época.” [3]

 

Imagine-se o impacto dessa fala, especialmente no momento em que o futuro rei assume sem constrangimento algum seu intento “to prove a villain”. Estamos na abertura da peça: primeira cena do primeiro ato. O duque de Gloucester entra no palco e antes mesmo de abrir a boca já causa uma impressão indelével na audiência pelas suas deformidades físicas: um braço menor do que o outro, corcunda, coxo; por fim, a expressão, para dizê-lo com alguma elegância, pouco atraente. Machadiana, a pergunta se insinua: por que de família real se assim; por que assim se de família real? As palavras completam o retrato de sua triste figura, trazendo ao centro do palco um novo tipo, ou seja, o vilão que não busca dissimular seus propósitos; pelo contrário, parece orgulhar-se com sua vilania explícita, obscena até, como se a desfaçatez fosse prova de superioridade moral.

O modelo mais comum de velhaco na tradição literária pode ser visto nas artimanhas silenciosas de um Iago, tão ágil na urdidura de intrigas quanto hábil na dissimulação de seu verdadeiro caráter. A cautela inspirava-se num motivo igualmente irrefutável, pelo menos segundo o cálculo do alferes:

 

“Pois se as minhas ações exteriores mostrarem

Meus atos inatos, meu vero coração

Exposto à clara luz, vai ser rápido até

Que eu entregue às gralhas meu coração desnudo,

Pra que o espicacem. Eu não sou o que sou.” [4]

 

O vilão precisa não ser o que é, assumindo inúmeros papéis e vestindo peles as mais diversas, a fim de camaleonicamente manipular suas vítimas, ajustando-se às expectativas alheias. Ademais, ganhar tempo costuma ser fundamental para arquitetar planos bem-sucedidos. Por isso, a prudência de Iago também é instinto de sobrevivência. Revelar à luz do dia o móvel de suas ações ameaçaria tornar a trama muito pouco efetiva, já que facilmente previsível. O segredo é alma do negócio de Iago. Na peça, a estratégia do alferes é coroada de êxito: ele só é desmascarado quando já é tarde demais; até o último momento todos creem que ele é um fiel e bom amigo.

O duque de Gloucester certamente desprezaria a cautela de Iago. Guerreiro temido no campo de batalha, apesar de suas limitações físicas, homem de coragem lendária, logo após proclamar-se “a villain”, ele enumerou as ações que planejou para tomar o poder. Escutar o duque de Gloster com atenção é indispensável para redimensionar o mundo contemporâneo.

(Trump, Orban, Bolsonaro, Milei, Bannon, Musk e tutti quanti.)

Você me dirá se exagero:

“Por meio de conjuras, arriscadas

insinuações, insanas profecias,

pasquins e invencionices, mortal ódio

mantenho entre o monarca e o irmão Clarence.” [5]

 

Vale a pena ter contato com o texto no original:

“Plots have I laid, inductions dangerous,

By drunken prophecies, libels, and dreams

To set my brother Clarence and the king

In deadly hate the one against the other.” [6]

 

A data geralmente aceita para a conclusão da escrita de Ricardo III remonta a 1592. Pois bem: o dono do X, Elon Musk, que provavelmente não leu a peça, lançou mão de idêntico método para ajudar a eleger Donald J. Trump em seu retorno à presidência dos Estados Unidos.

Explico:

(Mal escrevo e já me sinto constrangido.)

Mais modesto: proponho um paralelo.

Como se descobriu posteriormente, o plebiscito do Brexit, a eleição de Trump, em 2016, e, entre tantos exemplos possíveis, o triunfo de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, foram influenciados decisivamente pelas novidades inventadas no caldeirão político dos porões da Cambridge Analytica, empresa de consultoria co-criada por Steve Bannon que atuou para modificar drasticamente o cenário das disputas majoritárias em todo o mundo. Processada num tribunal londrino, a empresa, contratada em 2016 pela campanha de Trump, reconheceu-se culpada e admitiu ter coletado informações de aproximadamente 87 milhões de usuários sem o seu consentimento. [7] A massa até então inédita de dados num pleito presidencial foi processada para fornecer relatórios detalhados a fim de orientar as estratégias de Trump em sua jornada rumo à Casa Branca.

Contudo, e eis ponto mais importante, o modelo da Cambridge Analytica era o ardiloso Iago: trabalho sujo feito na surdina, de forma quase clandestina — guerrilha na veia; eis o lema paradoxal da extrema direita contemporânea.

Elon Musk seguiu à risca as lições de Donald Trump, Jair Messias Bolsonaro e Javier Milei: o arquétipo do duque de Gloucester; todos estão muito “determined to prove a villain”. Em seus discursos de campanha e no exercício do cargo em nada disfarçam suas intenções autoritárias e extremistas. Pelo contrário, converteram a retórica do ódio em linguagem cotidiana; transformaram a recusa decidida da alteridade em políticas públicas de exclusão na cara dura; revogaram direitos históricos com um despudor que surpreenderia inclusive o Ricardo III shakespeariano.

E ainda assim foram eleitos.

(Em eleições livres e democráticas.)

Acabamos de ver que as tramoias e picaretagens da Cambridge Analytica obedeceram ao receituário de Iago: para produzir um inimigo rumor sempre mais intenso, deve-se trabalhar em silêncio, à sombra. Assim foi no remoto, remotíssimo, ano de 2016.

(Nos tempos céleres que correm, uma vaga memória — se tanto.)

Em 2024 o padrão conheceu uma alteração tão radical que, presos no meio do redemoinho, ainda não tivemos tempo para nos espantar. Os números são tão hiperbólicos que soam irreais.

(Mais ou menos como investir fortunas no banco imobiliário.)

Em seu parque de diversões favorito, o Twitter, rebatizado X, Elon Musk criou a maior usina da história da humanidade de produção ininterrupta de “plots, inductions dangerous, drunken prophecies, libels, and dreams” e com idêntico alvo, qual seja, “to set in deadly hate” — e não importa entre ou contra quem, pois a plataforma X lucra, e muito, exponencialmente, com o ódio que lubrifica suas engrenagens.

(Suas entranhas — if you may.)

Aos números.

Estudo divulgado pelo Center for Countering Digital Hate sugere que Musk tornou o X uma fantástica fábrica de desinformação e, para ficar num só exemplo, em sua conta pessoal, chegou a difundir um vídeo sabidamente falso, um deep fake produzido com a mais avançada Inteligência Artificial, com declarações comprometedoras (e absurdas) da candidata Kamala Harris. [8]

Sem disfarce algum, pudor nenhum, Musk divulgou fake news e teorias conspiratórias sem cessar para favorecer a eleição de Donald Trump. Sortear 1 milhão de dólares todos os dias, numa óbvia gamificação da política, cujo efeito perverso é a hiperpolitização do cotidiano para despolitizar a pólis, não é nada diante da máquina de dissonância cognitiva coletiva urdida por sua plataforma.

Prepare-se para um choque de realidade:

“O estudo [do Center for Countering Digital Hate] identificou 746 postagens do bilionário entre julho e outubro com referência à eleição ou à política. No total, essas mensagens somaram 17,1 bilhões de visualizações, o dobro da audiência de todas as campanhas de comerciais pagas pelos republicanos na plataforma X.

Se fossem cobradas, essas postagens teriam custado à campanha US$ 24 milhões.

De acordo com o informe, pelo menos 87 das publicações de Musk neste ano promoveram afirmações falsas sobre a eleição dos EUA. No total, essas postagens acumular 2 bilhões de visualizações. Apenas as afirmações de Musk de que os democratas estavam importando eleitores e permitindo que estrangeiros pudessem votar somaram 1,3 bilhão de visualizações.” [9]

Utopia em pleno século 21 distópico: Elon Musk, leitor agudo de Machado de Assis, definiu sua personalidade ao ler o conto: “Suje-se gordo!” Manteve-se fiel à lição machadiana: a eleição de Donald Trump é prova inconteste. E sujo, muito, engordou bastante sua fortuna.

Viver na era de Ricardo III é o desafio que temos pela frente. Aqui, contudo, não podemos nos dar ao luxo de repisar o poema do Bruxo do Cosme Velho, “Perguntas sem resposta”.

(Sei que nada será como antes amanhã. Amanhã ou depois de amanhã. Resistindo na boca da noite um gosto de sol.)

 

[1] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Ato I, cena I. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 485.
[2] William Shakespeare. King Richard III. Act I, scene I. Cambridge: The New Cambridge Shakespeare, 2009, p. 63.
[3] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[4] William Shakespeare. A tragédia de Otelo, o mouro de Veneza. Ato I, cena I. São Paulo: Penguin / Companhia das Letras, 2017, p. 137.
[5] William Shakespeare. A tragédia do rei Ricardo III. Op. cit., p. 485.
[6] William Shakespeare. King Richard III. Op. cit., p. 63.
[7] “Cambridge Analytica se declara culpada em caso de uso de dados do Facebook”. G1, 09/01/2019: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/01/09/cambridge-analytica-se-declara-culpada-por-uso-de-dados-do-facebook.ghtml.
[8] Ver um estudo feito pelo Centro, https://counterhate.com/research/musk-misleading-election-claims-viewed-1-2bn-times-on-x-with-no-fact-checks/.
[9] Jamil Chade. “Mentiras de Musk sobre eleição e Kamala somaram 2 bi de visualizações”. UOL, 05/11/2024: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/11/05/mentiras-de-musk-sobre-eleicao-e-kamala-somaram-2-bi-de-visualizacoes.htm.

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