Não há nada de mais previsível e de mais maçador do que as nuvens de “comentadores do dia seguinte” que se precipitam sobre o espaço público oferecendo toda a sorte de explicações para a derrota dos democratas americanos. A avalanche de especialistas sociais é tão grande e o tom tão convicto que quase nos fazem crer que tudo se resolveria substituindo os atuais dirigentes do partido por aqueles que, agora, depois dos resultados, sabem tudo que há para saber sobre como ganhar uma eleição: eles compreenderam, eles avisaram — e eles não foram ouvidos. Quelle vieille chanson.
Julgo que é necessário defendermo-nos destas vagas de explicadores. Vai para aí, como habitualmente, muito oportunismo mas principalmente muito equívoco político. Gostaria de começar por lembrar o básico da teoria democrática — as eleições não são critério de razão, mas de legitimidade. A escolha maioritária do povo não é a boa escolha — é simplesmente a escolha que tem autoridade para governar até as próximas eleições. A escolha do povo é para respeitar. A escolha do povo é para cumprir. Mas essa escolha não dispensa a oposição. Os eleitores derrotados não esperam que os seus votos se rendam à maioria, se rendam aos vitoriosos. Eles esperam que, como minoria, os seus eleitos façam oposição ao governo. Para pôr as coisas claras: a derrota de um partido não o deve levar, só por essa razão, a mudar de opinião, a mudar de programa ou a mudar de convicções — deve, isso sim, levá-lo à tarefa de construir, na oposição, uma alternativa vencedora nas próximas eleições.
Talvez deva ser mais claro, no caso concreto. Não, não considero que o povo americano tenha feito uma boa escolha. Não considero que a escolha feita esteja à altura do ideal de uma República que pretende ser exemplar — uma “city upon a hill”, olhada por todos os restantes povos com admiração. Não, não acredito que essa escolha seja, sob qualquer ponto de vista, inspiradora para qualquer tipo de liderança mundial. Não creio que esta escolha seja um sinal de “grandeza da América” mas, pelo contrário, vejo-a como indício do seu declínio. Pese embora a sua legitimidade indiscutível, estou convencido de que os americanos pagarão um preço na sua reputação internacional e que esse preço se estenderá ao chamado Ocidente, com a Europa à cabeça. Ora, sendo esta a minha opinião, a única coisa que tenho a dizer aos democratas, e em particular a Kamala Harris, é que eles travaram o bom combate. Não, não acho que, por perderem, devam mudar — pelo contrário, devem perseverar. Espero que o façam.
Assim me afasto das luminárias intelectuais que tenho lido nos últimos dias, fazendo sugestões de mudança que mais me parecem sugestões de rendição. Também a mim me vai faltando a paciência para a linguagem do politicamente correto, mas não confundo isso com a batalha pelos direitos das minorias que a esquerda fez nas últimas décadas. Essas batalhas políticas — os direitos da mulher, os direitos dos homossexuais, os direitos dos emigrantes — tornaram o mundo mais justo. Não há nisso nada de radicalismo. Não há nisso nada de desprezível ou de “cultura woke”, como lhe chamam agora. Há simplesmente decência. Decência e dignidade. Incluo-me entre os que acham que o combate às desigualdades econômicas e sociais deve ser intensificado e acho que têm razão aqueles que dizem que a esquerda não valorizou este tópico como devia. Mas isso não tira razão e prioridade à luta pela dignidade de todos os indivíduos. Bobbio escreveu nos anos noventa que “nunca como na nossa época foram postas em causa as três fontes principais de desigualdade: a classe, a raça e o sexo.” Não, não estou de acordo com a falsa dicotomia entre “politica econômica” e “política de identidade”. Ambas ocupam um espaço natural naquilo que faz de nós pessoas de esquerda — a importância que atribuímos ao valor da igualdade. Há sempre espaço para melhorar, é claro, mas, mais uma vez, a esquerda americana travou o bom combate. No momento da derrota, é isto que tenho a dizer.
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