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Uma temporada na China: memórias de um professor (I)

Durante a preparação dos cursos uma pergunta me inquietava: como reagirão os estudantes chineses à literatura brasileira?
22/11/2023 | 05h00

Por João Cezar de Castro Rocha

Em 2021 tive a fortuna de tornar-me Xioaxiang Scholar do Estado de Hunan, na China, e da Universidade Normal de Hunan (UNNH) e do Centro Interdisciplinar Alexander von Humboldt. Como parte de minhas obrigações, passei dois meses em Changsha, cidade-sede da UNNH, desenvolvendo pesquisas, a fim de estabelecer um convênio com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), colaborando na criação do Departamento de Português e ensinando cursos de literatura brasileira, cultura latino-americana e literatura comparada.

A experiência foi uma fascinante via de mão dupla, dando corpo à intuição certeira do sábio Riobaldo: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Por isso, durante a preparação dos cursos uma pergunta me inquietava: como reagirão os estudantes chineses à literatura brasileira? Eis uma dessas questões que levam longe e se desdobram em novas perguntas: o que eu aprenderei com suas dúvidas?

O entusiasmo dos estudantes de português e de espanhol foi contagiante! Ao entrar em sala, em cada um dos quatro encontros que mantive com as turmas, a primeira grande surpresa: era aplaudido pelos estudantes. Contudo, deixo o ego de lado: o protocolo era óbvio; aplaudia-se nem tanto um professor em particular quanto se reconhecia a centralidade do magistério na formação de um país. Nesse sentido, a colaboração com a professora Zhang Ying foi fundamental, pois sua participação durante o curso criou pontes indispensáveis de diálogo.

O interesse dos estudantes nas aulas me pareceu diretamente proporcional à diferença radical entre os idiomas – mandarim, português e espanhol – e as culturas – propriamente continentais, e que contam ainda com marcadas diferenças internas. Por assim dizer, continentes-arquipélagos.

Por exemplo, é um autêntico desafio para uma aluna chinesa pronunciar o ditongo nasal “ão” em português, que se transforma num desafio mais temível que o enigma da Esfinge derrotada por Édipo. Nada mais saboroso do que escutar as variações infinitas do nome próprio mais comum da língua: João, subitamente, parece a palavra mágica que abre todas as portas.

De igual modo, um abismo cultural se descortinou em cada encontro. Não me esquecerei da perplexidade expressa no olhar dos estudantes: o Brasil é independente “só” há dois séculos? Ontem, portanto! O poema que ajudou a definir a nacionalidade tem como título um paradoxo? “Canção do exílio”? Ênfase especial na pronúncia de exílio? – e não se esqueça do significativo ponto de interrogação. No final do encontro, gravei um vídeo despretensioso, mais para registrar meu encantamento com a intensa participação dos estudantes.

Aqui, o inesperado trouxe mesmo uma surpresa: o ministro da Justiça, Flávio Dino, maranhense como o poeta Gonçalves Dias, cujo aniversário de 200 anos de nascimento se celebra justamente em 2023, divulgou o vídeo, gerando grande repercussão.

O último encontro com essa turma propiciou outro momento inesquecível. Conversamos sobre um poema de Conceição Evaristo, “Vozes-mulheres”, cujos versos condensam a história das mulheres negras, num arco temporal que abrange da diáspora africana à afirmação da própria voz numa sociedade hostil.

Na véspera da aula me perguntava como faria para apresentar o conceito-chave da obra de Conceição Evaristo: escrevivência. Ora, mas a dúvida era tola! Como sempre, a resposta já se encontrava na literatura, pois o poema dá corpo ao conceito. Escrevivência nem de longe se confunde com autoficção; pelo contrário, na palavra de Evaristo, o eu não se basta narcisicamente a si mesmo, antes nele confluem inúmeras experiências prévias e a projeção de um futuro enquanto possibilidades ainda não vividas. O eu lírico da escrevivência também é muitos outros; aqui, lidamos com um eu-nós-outros. Numa palavra: um Eu-Ubuntu.

Pronto!

Ler o poema com os estudantes – palavra a palavra, verso a verso, respiração a respiração. Principiar pela voz sequestrada da bisavó na travessia dantesca nos tombadilhos do Atlântico Negro, nos porões do navio – reunindo Castro Alves e Paul Gilroy. Escutar a voz silenciada da avó escravizada no Brasil oitocentista dos brancos-donos de tudo – tema que também se encontra presente no excepcional e caleidoscópico Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Dar vez à voz nunca ouvida da mãe, doméstica na casa grande urbana dos sinhôs e das sinhás do século XX, drama exposto com vigor em Solitária, de Eliana Alves Cruz, no fundo das cozinhas alheias. Chegar à filha-poeta, escrevivente, modo superior de sobrevivência, que forja a forma dessas “vozes-mulheres”; forma ainda marcada com rimas de sangue e fome. Vozes que se reúnem e projetam na utopia-filha, dona da liberdade de ser o que se deseja: finalmente, a vida-liberdade.

Brilho no olhar dos estudantes. Uma aluna, Laura – os estudantes chineses têm a delicadeza de adotar nomes ocidentais para facilitar o diálogo conosco – traduziu o conceito, isto é, internalizou a escrevivência.

 

Hora de voltar ao Brasil, mas não sem antes tornar voz coral o conceito de Conceição Evaristo. Em princípio, distante, chinesa, mas, ao mesmo tempo, próxima, profundamente literária.

Recordam o que propus no princípio desta crônica? O vivo interesse dos estudantes chineses pela literatura brasileira muito provavelmente é estimulado pela radical diferença tanto linguística quanto cultural.

Lição (decisiva) das coisas: o outro, precisamente por sua diversidade, enriquece minha vida, amplia meu horizonte, abre meus olhos e ouvidos.

O sambista já havia tudo dito: “E vida melhor não há…”.

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Você se pergunta: o que eu aprendi com os estudantes chineses? Muito; mas aí já seria uma segunda crônica.

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