No fim da ladeira, uma casa de dois pavimentos. Três quartos, copa, cozinha, sala com o conceito aberto, banheiros em ambos os andares e um pequeno quintal. Mas, o melhor, amplo terraço que permite uma visão privilegiada. Dependendo da direção que se queira olhar, pode avistar o mar ou o agito da comunidade.
Até aquele ponto, a favela é urbanizada. Como se aquela casa avarandada fosse o marco divisório. Coleta de lixo, rua asfaltada, tráfego de carros e motos, serviços dos correios, clínica da família, posto policial e uma quadra novinha reformada pela prefeitura. As contas de luz e gás chegam regularmente aos endereços.
A família resolveu passar uns dias em Passa Quatro (MG). Aproveitar o recesso do Chico, garçom de um hotel cinco estrelas na orla de Copacabana, que com a esposa e os três filhos, ficaria hospedado na casa da irmã. A ideia era respirar o ar frio da Serra da Mantiqueira e matar a saudade dos familiares que moram por aquelas paragens.
No fim do ano, os parentes do Chico plantam na favela na zona sul do Rio na semana do Natal e ficam para o show da virada. Assistir da laje ao espetáculo da queima de fogos é uma beleza. Por isso que não se constrange em chegar e montar acampamento na casa da irmã em pleno mês de julho.
Unem o útil ao agradável. Descobriram uma maneira simples e barata para aproveitar os períodos de folga. Em julho na serra e no final de dezembro no litoral.
Quando chegaram à favela, depois da semana na casa da irmã, tiveram uma surpresa. A casa estava ocupada.
Fizeram do terraço um posto de observação. Meninos que nunca viram na comunidade estavam fortemente armados como se a paz do lugar dependesse da atenção deles.
As crianças e a esposa nem desceram do carro. Chico entrou cerimonioso na sua própria casa. Pediu licença. Perguntou quem era o responsável pela ocupação. Estava confuso demais para sentir medo. O traficante que chegou para dominar o morro deixou o recado com os meninos para quando o dono da casa chegasse, imediatamente, fosse falar com ele.
Ainda perplexo, o homem entrou no carro e foi bater na porta de um irmão da igreja no pé da ladeira. Sem entrar em detalhes, deixou a família em segurança e foi para a boca. Não queria ser áspero, mas também não ia bancar ao frouxo.
Soube que o dono da boca não estava disposto a entregar o imóvel. Mas como se dizia uma pessoa justa, o traficante disse que em uma semana ia pagar em dinheiro vivo pela propriedade. Chico disse que a casa não estava à venda. O homem ignorou a informação. Precisava da casa para manter a paz do lugar, alegou o invasor.
Saiu da boca de fumo e por um instante cogitou passar no posto policial, a poucos metros dali. Mas, logo desistiu da ideia. Assim como todos os vizinhos, os policiais de plantão sabiam o que estava acontecendo e resolveram honrar o pacto de silêncio.
No domingo, antes do culto da noite, a equipe de louvor ensaiava e as classes de escola bíblica estavam reunidas. No corredor, entre abraços e conversas, a pastora soube da situação. Orientou um diácono para iniciar o culto e subiu a ladeira acompanhada por dois irmãos da igreja.
Na boca de fumo, a pastora entrou sem pedir licença. Foi direto ao dito dono do lugar que assistia ao futebol na televisão. Foi recebida com respeito, conquanto o traficante não demonstrasse vontade de desviar o olhar do aparelho de TV. A pastora não deu voltas e não deu sinais que ia esperar pelo fim da partida para falar o que queria.
– Estou aqui porque o senhor despejou uma família. São trabalhadores, membros da minha igreja.
— Pastora, não despejei ninguém. Disse que vou pagar e ele vai conseguir comprar outra casa aqui no morro.
— Ele não quer dinheiro. Ele só quer a casa dele.
— Pastora, eu sou o novo Davi do lugar.
— O que você está falando, rapaz?
— Eu decido quem vive e quem morre; o certo e o errado; quem é amigo e quem é inimigo…
— Você não sabe o que está dizendo. Mas deixa eu te falar uma coisa, com Deus não se brinca. Terrível coisa é cair nas mãos de um Deus irado!
— Pastora, Deus me colocou neste lugar para cuidar de geral. Sua responsabilidade é com a sua igreja. Eu sou o dono do lugar porque Deus me escolheu para cuidar de geral.
O jogo estava no momento tenso quando a pastora saiu daquele lugar em direção ao templo. Antes de sair, não em tom de desafio, mas apenas como uma notificação, disse que ia convocar um clamor entre as igrejas da comunidade para que a justiça de Deus se fizesse naquele lugar.
Na quarta-feira daquela mesma semana, irmãos e irmãs de diversas igrejas evangélicas, no topo da ladeira, com mãos erguidas, em frente à casa invadida do Chico, em torno das 20 horas, se puseram a orar. Um grupo de jovens com violão e pandeiro louvavam. Os meninos armados na laje lançavam olhares nostálgicos, perdidos e estranhamente cúmplices.
Uma semana após o culto na rua o Chico estava em casa. Um grupo da igreja organizou um mutirão para limpar o lugar antes da entrada da família. No fim do ano, como sempre faziam, os familiares viriam de Passa Quatro e fariam festa na laje, com direito a churrasco e louvores.
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Narcopentecostalismo é uma palavra complicada. Desavisados podem empregar o termo de forma pejorativa, como quem tenta simplificar o que é complexo.
De fato, boa parte do pentecostalismo brasileiro foi sequestrado pelos mercadores da fé que fizeram alianças com a extrema-direita. No entanto, não dá para inferir a partir disso que o pentecostalismo inteiro cabe no “complexo de Israel”.
Duas perspectivas para observar tais interseccionalidade complexas: o olhar distante, a partir das coberturas do entorno e/ou, o olhar de dentro, tendo como torre de vigia a laje.
Quem fala da cobertura geralmente discursa do alto. Nas lajes, na favela, geralmente, conversamos.
Ademais, para muitos meninos aliciados pelo tráfego de drogas, a igreja pentecostal figura como porta de saída possível. Inclusive, opção respeitada e admitida pelos chefes do movimento.
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