No sul do Amazonas, os Apurinã do baixo Seruiní vivem entre as ruínas de uma grande madeireira colocada em seu território ancestral pela ditadura militar. Até a empresa decretar falência, foram décadas de exploração, comparáveis por alguns indígenas ao trabalho análogo à escravidão.
Desde o final do ano passado, o medo de serem dominados em sua própria casa voltou a assombrar os Apurinã. A propriedade registrada em nome da madeireira foi vendida à Nemus, uma empresa que comercializa NFTs (sigla em inglês para Tokens Não Fungíveis) lastreados em itens reais da fauna e da flora da região.
No site oficial, a Nemus anuncia uma “experiência NFT colecionável projetada para conservar e proteger a Floresta Amazônica”. A proposta atrela a compra do ativo digital a projetos reais de conservação, que poderiam ser fiscalizados pelos detentores do NFT.
A produção e a venda dos ativos digitais são feitas sem consentimento coletivo dos Apurinã e viola o direito à consulta, livre, prévia e informada. As violações são consequência da política de “demarcação zero”, de Jair Bolsonaro (PL) e perpetradas com a permissão oficial de integrantes da cúpula da Funai.
Batizada em nome dos rios que a cortam, a Terra Indígena (TI) Baixo Seruiní/Baixo Tumiã está há mais de uma década em fase de estudos, que precede a demarcação do território. Por isso, a legislação brasileira permite que essas áreas sejam comercializadas como propriedades particulares.
“Para além da falta de consulta livre, prévia e informada e do estímulo à mercantilização da floresta, a iniciativa da Fundação Nemus ignora o direito originário dos Apurinã ao seu território tradicional e corrompe o modo de vida e as práticas milenares de uso da floresta. Mais do que NFTs, os Apurinã buscam a demarcação da Terra Indígena Baixo Seruiní”, afirma Danicley Aguiar, integrante do Greenpeace.
Por meio de depoimentos e documentos públicos, o Brasil de Fato resgatou o histórico das relações entre a Nemus e os indígenas e identificou casos de desrespeito aos ocupantes tradicionais do território, considerado por antropólogos e pelos próprios indígenas como berço do povo Apurinã.
Os casos envolvem negligência com a saúde indígena na pandemia, além da sonegação de informações sobre a compra da terra e atividades econômicas desenvolvidas pela empresa.
“Se a gente aceitar esse pessoal [da Nemus], a demarcação será parada, e nós não temos outra chance. Se a gente não aceitar [a Nemus], o processo de demarcação continua. E a demarcação dessa terra é o que nós queremos”, afirma Melquisedeque Lopes Soares Apurinã, morador da terra indígena.
Após ouvir os Apurinã, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas acionou a Nemus e pediu que a empresa comprove a posse da terra, a consulta às comunidades e a autorização da Funai para explorar economicamente a TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã.
O Brasil de Fato procurou a assessoria de imprensa da Nemus, mas os questionamentos não foram respondidos. Em inglês, a conta da empresa no Twitter publicou que a terra é propriedade privada e não se sobrepõe a áreas indígenas. A Nemus diz que trata as comunidades indígenas com respeito e que forneceu as informações solicitadas pelas autoridades brasileiras. Procurada, a Funai não respondeu.
“Aquela terra é a terra indígena Apurinã desde sempre”
O território ancestral dos Apurinã é uma das áreas mais preservadas da Amazônia, graças à presença dos indígenas. “Eles dizem que vão comprar a terra para preservar. Não, nós estamos preservando já há muito tempo. Nós não desmatamos a Floresta, nós cuidamos”, afirma Melquisedeque Apurinã.
Flávio de Meira Penna, fundador da Nemus e aclamado empreendedor ambiental, declarou que os indígenas são “meio que invasores na nossa terra”. A declaração, feita em inglês durante entrevista a um canal estadunidense no Youtube, chocou as lideranças.
Melquisedeque rebateu. “Eles é que são os invasores. Porque eles estão vindo de fora. São estrangeiros, nem sei de onde são. Nossos bisavós e tataravós nasceram, cresceram e morreram lá. Estão enterrados lá. Os ossos, os cemitérios, tudo está lá. Então nós temos aquilo como sendo terra indígena. Lá é o tronco velho dos Apurinã.”
“Aquela terra é indígena desde sempre”, concorda Daniel Lima, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que ajudou os Apurinã a denunciar o caso ao MPF. “E mesmo que não haja ainda a demarcação homologada, isso não quer dizer nada. A Constituição Federal prevê isso: onde os índios estão vivendo, ali é Terra Indígena”.
Consulta prévia não aconteceu, dizem indígenas
Os Apurinã afirmam que a Nemus pretende implementar projetos de exploração dos recursos naturais sem consulta livre, prévia e informada aos indígenas, desrespeitando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Além dos NFTs, os Apurinã ouviram de representantes da Nemus que a empresa pretende impulsionar a produção de castanha, reabrindo uma antiga pista de pouso e construindo uma estrada que rasgaria a floresta entre o rio Seruiní e a cidade de Pauiní (AM).
Os indígenas afirmam não terem sido informados claramente sobre os projetos, que, embora pudessem facilitar a locomoção entre as áreas urbanas e rurais, têm potencial para trazer impactos socioambientais significativos e favorecer o acesso de invasores.
“Realmente estão querendo abrir uma pista de pouso e uma estrada da Nemus para Pauiní. Por uma parte é bom. Porque a gente vai na cidade e volta no mesmo dia. Mas o impacto que a gente pode sofrer mais na frente… Eu acho que não vale a pena”, avalia Melquisedeque.
Os Apurinã ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que a Nemus mantém contato regular com apenas uma das lideranças, ignorando os as centenas de moradores divididos em várias aldeias e dezenas de núcleos familiares.
Lideranças dizem também que a empresa ignora pedidos de informação sobre quais atividades são desenvolvidas na área ocupada há séculos pelos Apurinã, onde o povo cultiva roçados de mandioca e extrai castanha-do-Brasil.
Os protocolos internacionais de consulta livre, prévia e informada exigem que o processo seja acompanhado pela totalidade dos moradores, com reuniões e assembleias amplamente convocadas, com tradução para língua materna e por meio de documentos ratificados por autoridades.
“Eles não convidam coletivos, o pessoal da aldeia, não convida todo mundo para ter uma palestra. Às vezes eles sentam com uma ou duas pessoas. O assunto deles é com duas ou três pessoas no máximo”, relata Melquiseque.
Ao perceber a movimentação no território, Melquiseque procurou os representantes da Nemus. “Eles disseram que tinham comprado [a terra] e eu pedi uma prova. Eu queria saber até onde é o limite de onde eles compraram. Eles disseram ‘Nós não podemos, eu não trouxe, o documento ficou lá'”, relata.
“Uma imagem [em NFT] que eles fazem dá muito dinheiro. Tudo em cima disso eles já estão tirando. Mas eles não repassaram para a gente que ia fazer isso. Por isso a gente vê que eles estão nos enganando e roubando por trás, porque eles não declaram a verdade”, afirma Melquisedeque Apurinã.
Donizetti Apurinã, morador da TI Baixa Seruiní/Baixo Tumiã, também diz não ter sido informado: “E aí deixa a gente meio confuso. Nunca apresentaram documento dessa terra, se realmente compraram da antiga empresa ou não”.
Um indígena Apurinã foi levado pela empresa ao cartório e assinou um documento mudando o nome do território para “NFT”. A alteração foi registrada em um vídeo divulgado pela Nemus nas redes sociais, buscando legitimar a presença da empresa no território.
A ação de marketing provocou revolta no filho da liderança que aparece assinando o documento. “Eles fizeram o pai assinar. Só que o pai não sabe ler. E não mostraram o documento para nós”, diz Donezetti Apurinã, morador da TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã.
Funai permitiu entrada de não indígenas durante pandemia
A reportagem colheu evidências de que a Nemus pode estar sendo favorecida pela Funai de Jair Bolsonaro (PL). Representantes da empresa se valeram de um suposto aval da cúpula da Funai em Brasília para pressionar, fora dos registros oficiais, as unidades locais do órgão indigenista. O objetivo era acelerar a entrada de funcionários e permitir atividades econômicas no interior da TI.
A Funai permitiu que funcionários da Nemus desrespeitassem protocolos de saúde estabelecidos pelo próprio órgão indigenista durante a pandemia de coronavírus. “No tempo da pandemia forte, eles estavam vindo. Na pandemia eles entraram sem permissão de ninguém”, relatou Melquisedeque Apurinã.
Em 17 de março deste ano, uma equipe da empresa foi autorizada a entrar na Terra Indígena pela Assessoria de Acompanhamento aos Estudos e Pesquisas (AAEP), ligada à presidência da Funai e então chefiada pelo delegado da Polícia Federal Alexandre Rocha dos Santos.
A permissão infringiu a portaria 419/2020 assinada pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier. A norma impedia a entrada de não indígenas nas comunidades durante a pandemia. As exceções à regra deveriam ser concedidas apenas pelas Coordenações Regionais (CRs) da Funai.
A CR Médio Purus, responsável pela proteção dos territórios Apurinã, se manifestou oficialmente contra a entrada dos funcionários da Nemus. Semanas antes, a unidade da Funai já havia notificado a empresa pelo descumprimento da portaria. Mesmo assim, foi contrariada pela AAEP.
Embora tenha ignorado os protocolos sanitários em favor da Nemus, o chefe da AAEP usou a portaria 419/2020 para impedir a Fiocruz de prestar assistência médica na TI Yanomami, castigada por surtos de desnutrição, malária e falta de medicamentos. Em setembro do ano passado, o delegado Santos alegou que a entrada dos médicos ofereceria “riscos de contaminação às comunidades tradicionais”.
Um século sem direito à terra
A presença dos Apurinã na TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã é ignorada deliberadamente pelo governo brasileiro há pelo menos um século. O descaso começou com o aldeamento dos indígenas no início do século 20 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Em 1975 a Funai liberou a compra do berço dos Apurinã pela Madeireira Nacional SA, conhecida como Manasa. A certidão assinada pelo órgão indigenista brasileiro atesta “não haver conhecimento de existência de aldeamentos indígenas na área da peticionária [Manasa], não havendo em consequência restrição à opor a plena utilização da mencionada área pela interessada”.
A documentação habilitava a Manasa a captar recursos e isenções fiscais junto à Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Décadas se passaram, e a Manasa colocou as comunidades para trabalhar na extração de castanha-do-Brasil e madeira.
Com os tempos de Manasa na memória, lideranças Apurinã mais experientes tentam alertar a comunidade sobre os perigos de ceder a autonomia do território. Em um registro em vídeo ao qual a reportagem teve acesso, de dezembro de 2021, lideranças reunidas debatem o que fazer diante da chegada da Nemus.
“Eles [Nemus] não trabalham só de sete às onze horas, não. Eles ‘toram’ direto [até o fim do dia]. E nós não aguentamos. E esses nossos filhos e netos que estão nascendo aqui, eles vão trabalhar subordinados. Só ganhar aquele ‘custozinho’. E aí os nossos costumes vão acabar. É pouca gente que vai aguentar trabalhar [para a Nemus]”.
A fala carregada de preocupação é de uma liderança Apurinã e foi dirigida a integrantes das comunidades indígenas do baixo Seruiní. Uma delas, chamada Penedo, ainda hoje é conhecida como “Manasa”, sigla para Madeireira Nacional SA, empresa favorecida pelo regime militar para explorar as riquezas naturais dos Apurinã.
A liderança prossegue na tentativa de alertar os parentes. “É trabalho idêntico ao escravo. A comida que vocês vão levar, vão comer no sol. Se vocês não souberem o que vocês estão fazendo, vai acontecer isso. Quando eu dizia para vocês ‘a fazenda está cercada’, era despertando vocês”.
Lucro à vista
Os NFTs vendidos pela Nemus estão atrelados à fauna e à flora da TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã. Os ativos digitais são vendidos online em moedas virtuais. A estratégia da Nemus está focada no mercado exterior, onde os NFTs têm batido recordes de valorização, pegando carona em uma nova etapa de financeirização digital do mercado de investimentos e especulação financeira.
A Nemus apresenta a criação dos NFTs em terras Apurinã como uma iniciativa dos próprios indígenas. Em um vídeo institucional com a participação de indígenas, a empresa escreve: “Para atrair atenção à coisa mais não fungível para o planeta, nativos da floresta transformaram a própria terra em um NFT”.
Flávio de Meira Penna, fundador da Nemus, deu uma explicação diferente em entrevista ao programa Capital & Mercado, da Band. “A ideia do NFT surgiu no início do ano passado em uma conversa com os meus filhos”, contou ao apresentador.
Penna diz ter ouvido do filho, um operador de criptomoedas, sobre a moeda digital Doge Coin, que ultrapassou os 50 bilhões de dólares. A valorização impressionou o empresário: “Eu digo ‘não, espera aí’. E se a gente criasse uma coisa similar para proteger a Amazônia? (…) E aí foi que a gente começou a juntar as peças e surgiu a ideia de fazer um NFT para Amazônia”.
À Band, Flávio explicou que a iniciativa não busca produzir lucros ou dividendos. Os ganhos serão, segundo o empresário, revertidos às iniciativas de conservação. “Uma parte é distribuída para a comunidade à volta, valorizando a comunidade à volta, e a outra parte é recompensada para os donos dos NFTs”, afirmou.
Mas, se o objetivo é apoiar iniciativas de desenvolvimento sustentável, por que é preciso comprar a terra? A resposta pode ter sido dada pelo próprio Flávio durante a entrevista. O empresário diz que a maioria dos NFTs é baseado exclusivamente em propriedades digitais.
“No caso do NFT da Nemus, nós efetivamente temos terra. Então obviamente você tem um respaldo de um ativo real que tem uma valorização muito grande. Não que a gente vá vender essa terra, mas você efetivamente tem o respaldo financeiro”, revelou.
Aos 65 anos, o dono da Nemus nasceu em Nova York e se define como um “empreendedor” e “conservacionista” da natureza. Seu currículo disponível na internet registra investimentos e cargos de gerência em empresas milionárias nas áreas da tecnologia da informação, bancos, start-ups e, mais recentemente, iniciativas empresariais no ramo madeireiro.
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