Autores: Lenir Santos – Doutora em Saúde Pública e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA e Cármino Antonio de Souza – Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – The Conversation
A história da regulamentação da hemoterapia no Brasil começa na década de 80. Vivia-se grande crise sanitária com a pandemia do vírus HIV, à época denominado HTLVIII, com milhares de mortes por transmissão sexual e pela transfusão de sangue contaminado. Muitas ações de impacto foram realizadas para o bloqueio dessas transmissões, uma delas, apoiada e fomentada por especialistas, foi a proibição da coleta remunerada de plasma existente à época, tanto de forma clandestina como regular.
Esse forte movimento foi parar na Constituição de 1988, que dedicou ao tema artigo exclusivo. Caso a Constituição tivesse sido pactuada em outro momento, talvez a questão do sangue e da hemoterapia não tivessem merecido tal destaque. Mortes como a do cartunista Henfil e de seu irmão Betinho causaram forte impacto por terem sido ocasionadas por transfusão de sangue contaminado. Esses fatos lançaram luz na questão da hemoterapia, com a vedação do comércio de sangue prevista pela Constituição. Um avanço em direitos humanos e civilidade.
Esse fato levou ao desenvolvimento de um robusto programa público de hemoterapia, a partir dos hemocentros públicos, ao lado de discussões sobre a busca de autossuficiência em produtos do sangue, componentes ou derivados. São 40 anos de proteção da vida e do sangue e, com o avanço da ciência, novas e excepcionais soluções tornaram-se realidade, como a produção de fatores de coagulação por recombinação de DNA, dentre outros.
Hemobrás e gratuidade
Esse movimento em prol da vida, da saúde pública de acesso universal, do Sistema Único de Saúde (SUS), levou à acertada decisão de se construir uma fábrica para produção de Hemoderivados, em 2004, importante iniciativa visando a autossuficiência do país ou, ao menos, a redução da dependência externa desses produtos. O Brasil ainda despende anualmente cerca de U$500 milhões na compra destes produtos. Essas ações melhoraram substancialmente a assistência a pacientes com hemofilia. O SUS garante a essas pessoas, de modo gratuito, tratamento e medicamentos.
A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, Hemobrás, com sede em Pernambuco, possui duas fábricas, uma de processamento de plasma e outra para a produção do fator VIII recombinante (exclusivo para a hemofilia). Foram investidos mais de R$ 2 bilhões ao longo desses anos, com a inauguração de sua fábrica de recombinante, prevista para outubro de 2023. A Hemobrás tem capacidade instalada para processar até 650 mil litros de plasma. Hoje, o Brasil capta cerca de 580 mil litros de plasma (público e privado), mas apenas 1/3 desse plasma está qualificado industrialmente.
A busca da autossuficiência e de mais plasma qualificado para a indústria requer melhoria de todos os processos de coleta, fracionamento e armazenamento do plasma e não tão somente a coleta. Plasma sem qualidade não servirá para uso humano ou para o processamento industrial. A necessidade do SUS, de três toneladas de plasma, exige que sejam captados 600 mil litros qualificados por ano. Atualmente capta-se 200 mil litros de plasma qualificado. É preciso prioritariamente investir na hemorrede para ter capacidade de qualificar o plasma coletado.
Assim sendo, é necessário que não se “venda” sangue ou plasma, mas sim que haja investimento público na qualificação dos hemocentros e serviços de hemoterapia públicos e privados. Não é adequado andar para trás em direitos humanos e na busca da diminuição das desigualdades sociais, mudando a regra atual de “não venda” do plasma/sangue humano, grande conquista civilizatória que permitiu sanear uma das áreas mais difíceis da saúde em passado recente.
Autossuficiência industrial
Importante dizer ainda que os hemocentros públicos, de forma geral, têm uma estrutura robusta e são muito qualificados, mas de modo insuficiente para as necessidades públicas, por falta de investimento público. O PAC do Governo Federal, recentemente apresentado à sociedade, prevê a aplicação de R$ 100 milhões na cadeia de produção de plasma nos próximos dois anos e isso é relevante para o tão almejado alcance de autossuficiência em produção industrial do processamento de hemoderivados, com melhoria considerável dos serviços do SUS.
Justo quando o país caminha para alcançar autossuficiência, tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição n° 10, de 2022, que propõe alterar o artigo 199 e parágrafos, que veda todo tipo de comercialização de partes do corpo humano, órgãos e tecidos, no qual se incluiu, como tecido humano, o sangue.
Importante lembrar a relevância do controle público e das políticas públicas sobre esse tema ante o recente fato do transplante do apresentador Faustão, figura pública nacional, que trouxe à luz para a sociedade a existência do excelente programa do SUS de transplantes, que caminha ao lado do programa de sangue.
A proposta inicial do Senador Nelsinho Trad (PSD/MS) era possibilitar que o setor privado participasse, em igualdade de condições com o poder público, do processamento do plasma para a produção de hemoderivados, como os fatores VIII e IX, o complexo protrombínico, o fator de von Willebrand, a albumina, as imunoglobulinas etc. Dentre os hemoderivados, no momento – até porque não pode ser substituído por produtos produzidos por engenharia genética -, o mais crítico é a imunoglobulina, que o Brasil vem comprando de 1.7 a 2 toneladas por ano (1 frasco tem 5 gramas).
Devido à pandemia do SarsCov2 (Covid-19) e às guerras que geram instabilidade em todo o mercado pelo consumo em grande quantidade de produtos derivados do sangue, há falta no mundo e, assim, seus preços disparam e a disponibilidade se reduz, crescendo o interesse do mercado em sua industrialização.
O debate que se instalou inicialmente no Congresso, e que precisa ser aberto à sociedade, foi sobre a necessidade de o poder público ter primazia no processamento do plasma, com a participação suplementar do setor privado quando houver plasma excedente em relação à capacidade pública.
O que, afinal, propõe a PEC?
Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a PEC 10, foi alterada pela sua relatora, a senadora Daniella Ribeiro, com o projeto substitutivo, que não somente encampou o processamento do plasma pelo setor privado em igualdade de condições com o poder público, mas possibilitou ainda a ‘venda’ do plasma humano pelos seus doadores.
Por que isso não é bom? Porque incentiva que pessoas sem recursos pratiquem comércio de seu próprio sangue, ao invés de estimular o altruísmo e a solidariedade coletiva. Altruísmo e solidariedade ajudam sociedades a elevar seus níveis civilizatórios, dando vida ao sentimento de pertencimento comunitário que pauta as sociedades mais justas e igualitárias.
A justificativa para a venda do próprio sangue pelas pessoas é que há pouco plasma no país, ao mesmo tempo em que se alega que o plasma é suficiente, mas tem sido desperdiçado pelo poder público. Ora: ou não há plasma suficiente, ou há plasma suficiente!…
O relatório que acompanha a PEC substitutiva também afirma que vender plasma não é a mesma coisa que vender sangue. Cabe esclarecer que o sangue é composto de duas partes fundamentais: uma líquida (o plasma) e uma celular, onde estão os glóbulos vermelhos, brancos e as plaquetas. O plasma, um dos componentes do sangue, pode, pela tecnologia da plasmaférese, já ser separado do sangue no momento da sua retirada.
Projeto está em desacordo com normas da OMS
Uma primeira observação a ser feita é que a tecnologia da plasmaférese para fins industriais é cara e a hemorrede brasileira ainda não a adota. Antes de investir recursos nessa tecnologia, há outras necessidades mais urgentes. Os hemocentros e os serviços de hemoterapia precisam de investimentos para atender necessidades urgentes, como ampliar a rede de coleta, o fracionamento e a aquisição de câmaras frias para o armazenamento do plasma.
É fundamental esclarecer à sociedade e ao Congresso Nacional sobre a necessidade de se qualificar o plasma para uso industrial, que exige armazenamento adequado para que o Brasil atinja a meta de ter 600 mil litros de plasma por ano. E isso não tem a ver com vender sangue/plasma, mas sim com investimentos públicos na hemorrede. É preciso ampliar no país a capacidade de coleta e armazenamento de plasma para atender a indústria, sem causar um risco de desabastecimento de outros produtos do sangue para fins terapêuticos, clínicos e cirúrgicos. Este debate deve ser constante.
Por todas essas razões, se aprovado, o texto da PEC como se encontra no momento trará grandes riscos ao sistema, e está em desacordo com o que preconiza a Organização Mundial de Saúde (OMS), que é contra a venda de sangue/plasma. Se isso voltar a ocorrer, aprofundará as desigualdades sociais brasileiras. Pois somente irão vender seu sangue as pessoas que necessitem de dinheiro para prover necessidades urgentes. Quem doa altruisticamente não irá vender sangue e, se houver venda, essas pessoas também não mais doarão.
É preciso ampliar o leque dessa discussão da autossuficiência brasileira, desde que não se busquem soluções simplistas, como a venda do sangue, quando a questão é muito mais complexa. É preciso priorizar o sistema de sangue, não só o do plasma, mas de todos os outros produtos derivados necessários à sociedade e ao SUS.
O sangue é um bem público de nossa sociedade, que hoje e sempre terá grande valor. A sociedade brasileira é solidária e altruísta e saberá encontrar soluções aos problemas de saúde. O importante é encontrarmos, todos juntos, as melhores soluções, sem retroceder a um passado que todos gostariam de esquecer.
* Esta matéria é de autoria de site parceiro, que se responsabiliza pelo conteúdo publicado.
Deixe um comentário