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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Motivos para olhar para trás

A retrospectiva que precisamos fazer
07/12/2023 | 05h00

Mulheres negras em marcha / Foto: Tânia Rego / Agência Brasil

Chega dezembro e começam as inescapáveis retrospectivas e quase sempre elas cansam, engatilham, esgotam e corremos delas, pois, quase sempre os motivos para comemorar coletivamente não são muitos. São imagens repetitivas de guerras, conflitos de toda ordem, desavenças políticas que parecem nos jogar para séculos ainda menos iluminados no tocante à democracia, às liberdades e direitos adquiridos… Mas existem motivos para olhar para trás.

No retrovisor de algumas lutas, muita coisa que está lá atrás precisa ser resgatada ou amplificada. Graças aos movimentos de mulheres ao longo de décadas hoje podemos trabalhar, votar, ser eleitas, ir à escola, ler, escrever, casar ou não casar, descasar, sair sozinhas …  Podemos escrever livros sem a necessidade de pseudônimos masculinos, ter cartões de crédito (até 1974 só com autorização do marido!), temos leis para punir quem nos violenta e mata.

Tudo isso ainda necessitando de briga, com reações virulentas em contrário, ainda não para todas, com cerceamento e uso indevido do nosso próprio corpo, do direito a dar a ele o destino que sonhamos… Mas também com muita denúncia, com canais construídos para vocalizar todas as lacunas e faltas que seguem nos aprisionando num tempo que teima em não passar.

Olhando para trás, para o tempo próximo das nossas avós, caminhamos, mas precisamos buscar com as ancestrais batalhadoras. que tanto fizeram para que hoje estivéssemos aqui, a força para não estacionar no meio da estrada. Está aí um motivo real para olhar para trás.

E se para todas as mulheres existe uma garra de vida a ser resgatada no passado como espécie de antídoto ao cansaço extremo imposto pelo nosso tempo, a necessidade de recuperação desta vontade de existência precisa ser ainda mais profunda para nós, mulheres negras.

Fomos nós que majoritariamente organizadas, reunimos dinheiro e estratégias para libertação literal e simbólica de todo um povo. Os cães ladram, a caravana passa, mas nesse grupo que se move são as pessoas não brancas que quase sempre têm os calcanhares mordidos pelos caninos que latem e avançam.

Foram nossas as primeiras vozes gritando por saúde, trabalho e educação para os jovens que a cada 23 minutos perdem a vida. Fomos nós que garantimos o funcionamento e o sustento de casas e famílias inteiras com trabalho subalternizado, explorado, estigmatizado.

Nós, aquelas que ainda hoje ganham os menores salários do país e que por conta de termos em nossas mãos e em nossas costas o cuidado da casa, estamos em maioria entre os 22 milhões de brasileiros e brasileiras da “geração nem-nem” – nem estuda e nem trabalha.

O passado nos ensinou e precisa continuar ensinando. Mulheres já possuíam soluções e técnicas para sobrevivência e existência lá naquele passado que nos recusamos a encarar. Vamos sempre brigar por respeito, mas convidando para a dança da busca pela felicidade todos os que efetivamente querem uma sociedade melhor e diferente a se juntarem na caminhada por existências dignas. Todas elas. Sem apagamentos e hostilidades tão úteis ao sistema colonial, que nos forjou para encarar o mundo com a lente da competição e da exclusão, na impossibilidade de coexistências.

A receita para que as retrospectivas passem a ser cada vez menos dolorosas está lá, neste passado específico que enxergava a possibilidade de vida plena, apesar de dificuldades igualmente ou infinitamente maiores do que as que ainda precisamos enfrentar hoje.

Ele, o passado, tem para nos dar no presente e no futuro os motivos para imitar o símbolo Adinkra do pássaro Sankofa, que caminha para frente, mas sem perder de vista afirmativamente o que ficou para trás.

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