Esta coluna tratou há algumas semanas da parcialidade com que a imprensa brasileira noticia o conflito Israel-Hamas. Para exemplificar, acompanhei a cobertura do Jornal Nacional sobre o tema. Naquele dia 23 de novembro, o programa jornalístico dedicou tempo sete vezes maior ao drama dos reféns do Hamas que ao sofrimento de mulheres e adolescentes presos ilegalmente pelo governo de Benjamin Netayahu.
Enquanto vários reféns do Hamas e seus parentes contavam emocionados os detalhes da espera pela libertação e da ação dos terroristas no dia 7 de outubro, apenas dois palestinos libertados apareceram rapidamente na tela da Globo. E ainda por cima com referências criminais. (Leia a coluna aqui)
Vinte dias depois, o massacre que as forças israelenses continuam a fazer em Gaza resultou na impressionante marca de 18 mil mortes. A grande maioria das vítimas é civil, quase metade é de crianças e adolescentes. Nunca tantos jornalistas e funcionários de organismos internacionais, como ONU e OMS, foram mortos em combate.
Bombas transformam hospitais e escolas em escombros. Unidades de saúde são invadidas pelos militares de Israel, médicos são presos. Por causa do cerco, faltam comida, água e remédios.
O banho de sangue indiscriminado que o governo Netanyahu produz em Gaza motivou críticas até da parte de aliados. Ontem, mesmo Joe Biden, o grande parceiro internacional de Israel, que relutava em contrariar Bibi, foi obrigado a tornar pública sua objeção. O presidente dos Estados Unidos disse que, se continuar assim, o governo israelense vai perder apoio.
Diante desses fatos e da gritante desproporção da reação de Israel ao ataque do Hamas, em que 1.200 pessoas foram mortas, a coluna repetiu a checagem da cobertura do Jornal Nacional. Quem sabe, a marca de 18.400 mortos e 50 mil feridos tenha tocado os responsáveis pelo telejornal de maior audiência da TV brasileira? Ou então, o comentário de Biden?
Na edição de ontem, o assunto ocupou a abertura do noticiário. O JN mostrou famílias de reféns do Hamas, que terminaram em São Paulo o périplo feito pela América Latina para pedir apoio à libertação dos parentes. Todos foram mostrados ao espetador com intimidade – um dos reféns, Michel, é apresentado como “pai da Rem e irmão da Maya”, como se a família fosse conhecida do público.
Em um trecho, a repórter informa que na entrevista coletiva que deram em São Paulo, os familiares dos reféns fizeram um apelo “para que a Cruz Vermelha possa entrar em Gaza para cuidar e trazer notícias sobre a saúde daqueles que continuam em poder do Hamas”. Nenhuma menção aos milhares de palestinos mortos e feridos.
A seguir, o JN informa que o governo de Israel resgatou em Gaza os corpos de dois jovens reféns e emenda noticiando que as cidade palestinas de Khan Yunis e Rafah sofreram bombardeio israelense (ficam na região sul de Gaza, justamente para onde o governo de Israel determinou que a população deveria ir se quisesse escapar dos ataques).
O estrago feito pelas forças israelenses foi mostrado em imagem aberta, feita do alto, sem que o público pudesse ver a dor das pessoas atingidas. Mais uma citação sobre o fato de um quinto dos prédios de Gaza ter sido destruído e foi só. Nada mais sobre a tragédia vivida pelos palestinos.
Ainda houve tempo para mostrar o enterro de um soldado israelense, junto com a informação de que 105 militares de Israel foram mortos desde o início do conflito, a fala do porta-voz do Exército, declarações de Netanyahu e de Joe Biden – que pediu cuidado para que Bibi não perca apoio – e a aprovação na ONU de mais um inútil pedido de cessar-fogo.
No fim da cobertura do Jornal Nacional, a contagem do tempo não poderia ser mais eloquente: dos 5 minutos e 45 segundos dedicados ao conflito Israel-Hamas, somente 40 segundos foram usados para tratar do sofrimento dos palestinos.
O telejornal da Globo não é o único da imprensa brasileira a agir de forma parcial. Mas sua responsabilidade tem o tamanho de sua hegemonia. A grande maioria dos brasileiros se guia pelo que o JN noticia, e não apenas telespectadores de baixa renda, como muitos acreditam, mas também a classe média.
Talvez por isso seja tão frequente nas discussões de bar ou das tias do zap que quando alguém informa escandalizado mais um ataque assassino das forças de Israel em Gaza, exterminando civis, haja sempre alguém para rebater “E o Hamas?”, como se o combate a um grupo terrorista justificasse a carnificina que o mundo testemunha sem fazer nada para impedir.
Para um noticiário que se declara imparcial, o Jornal Nacional deveria rever sua prática.
Ou então mudar definitivamente o nome para Jornal Nacional de Israel.
Pensando bem, há jornais israelenses – como o Haaretz, por exemplo – que distorcem menos a realidade.
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