Por José Gomes Temporão*
O assassinato do diretor-executivo da United Healthcare em Nova Iorque, para além dos aspectos dramáticos envolvidos, merece uma profunda reflexão sobre o papel dos sistemas de saúde na garantia da vida.
O fato desencadeou uma onda de ódio nas redes sociais, com muitos cidadãos paradoxalmente apoiando o assassino devido às suas experiências pessoais ao buscar assistência médica, numa demonstração inequívoca da raiva reprimida dos americanos com o seu sistema de saúde. Esse mal-estar não observou recortes ideológicos nas redes sociais: à esquerda e à direita o tom era semelhante.
Ou seja, a grande maioria dos comentários sobre esse trágico episódio apoiava o crime cometido por esse cidadão, fazendo parecer evidente que se tratou de vingança por problemas relacionados a assistência médica recebida ou negada em algum momento de sua vida.
O jornalista Ken Klippenstein publicou em 10/12/2024, trecho do manifesto de Luigi Mangione encontrado durante sua prisão, que reforça essa interpretação:
“…Um lembrete: os EUA têm o sistema de saúde mais caro do mundo, mas estamos em 42º lugar em expectativa de vida. A United é a [indecifrável] maior empresa dos EUA em capitalização de mercado, atrás apenas da Apple, Google, Walmart. Ela cresceu e cresceu, mas e nossa expectativa de vida? Não, a realidade é que esses [indecifráveis] simplesmente se tornaram poderosos demais e continuam a abusar do nosso país para obter lucros imensos porque o público americano permitiu que eles escapassem impunes. Obviamente, o problema é mais complexo, mas não tenho espaço e, francamente, não pretendo ser a pessoa mais qualificada para expor o argumento completo. Mas muitos iluminaram a corrupção e a ganância (por exemplo: Elisabeth Rosenthal(autora do livro Na American Sickness), Michael Moore (fez um documentário SICKO extremamente crítico ao sistema de saúde americano)), décadas atrás, e os problemas simplesmente permanecem.”
Os Estados Unidos são o país que está na vanguarda dos avanços do conhecimento médico, mas tem um dos piores sistemas de saúde do mundo. Extremamente desigual, caro e ineficiente, são o país que mais gasta em assistência médica em relação ao PIB, mas com resultados do ponto de vista de saúde pública, quando comparados com os sistemas universais europeus, muito inferiores.
Em todo o mundo um dos maiores fatores de iniquidades são os chamados gastos catastróficos, quando as famílias são obrigadas a custear despesas médicas vultosas em caso de adoecimento sem a proteção adequada, seja por não ter acesso ao serviço público ou por ver negado o acesso por um plano ou seguro, trazendo ruína e sofrimento.
Este debate, lá como cá, levanta a necessidade de uma reflexão sobre o futuro dos sistemas de saúde e, no nosso caso, por onde devemos caminhar, pois existem os que defendem que a solução para a saúde brasileira seria copiar o que os americanos construíram nas últimas décadas, onde o mercado privado reina absoluto.
Enquanto isso o Congresso Nacional persiste na tentativa de aprovar mudanças na legislação que regula os planos de saúde. A tentativa que, para seus apoiadores, seria uma maneira de garantir a sustentabilidade financeira do setor, visa introduzir novas modalidades de produtos que permitam a comercialização de pacotes de baixa cobertura (apenas ambulatorial ou hospitalar), simplificados (apenas atenção primária) ou segmentados (planos de acesso limitado para idosos por exemplo). Mas sabemos que o impacto real trará mais segmentação, quebra da integralidade e maior impacto sobre o SUS, que terá que garantir os atendimentos excluídos desses novos produtos.
Dispomos de um sistema universal elogiado e reconhecido como extremamente importante (se não fosse o SUS nós viveríamos uma situação de barbárie social), mas subfinanciado desde seu nascimento e até hoje sem contar com uma estrutura financeira e de gestão que lhe permita desenvolver plenamente suas capacidades que são imensas. A participação do gasto público no gasto total está abaixo de 45%, o que é um paradoxo pois nos sistemas de saúde universais europeus a participação do gasto público no gasto total se encontra na maioria dos países da OCDE está acima de 65%.
E, neste momento, o projeto de ajuste fiscal em análise no Congresso enfrenta a posição retrógrada de parlamentares que, ao contrário do governo, que manteve a saúde fora do ajuste, tentam incluir o setor na equação a ser votada, o que fragilizaria ainda mais a situação econômico-financeira do SUS.
Portanto, é preciso chamar a atenção da sociedade para a importância de defendermos nosso sistema universal de saúde, a maior política social já implantada em nossa história. O caminho não é o de ampliar o mercado privado com medidas que trarão impacto negativo para a saúde do país, mas sim de ampliar o gasto público, fortalecendo a sustentabilidade econômica e tecnológica do nosso sistema universal.
No caso da saúde é importante impedir, através da regulação adequada do mercado privado, que os negócios coloquem em risco a saúde e a vida dos cidadãos.
*Médico, ex-ministro da Saúde
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