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Revogada a Lei de Cotas no Itamaraty?

Perfil que o Instituto Rio Branco deseja não comporta, nem na teoria nem na prática, o verdadeiro negro brasileiro
28/12/2024 | 07h06

Por Frei David Santos*

 

O Instituto Rio Branco (IRBr), criado em 1946, é o principal projeto das elites, até os dias atuais. Neste projeto, nunca teve espaço para o povo afro-brasileiro.

Em 1959, jornais cariocas se solidarizaram com o professor da Universidade do Brasil (hoje, UFRJ), José Pompilio da Hora, outro homem brilhante, mas negro, preto retinto, que “foi barrado [pelo Instituto Rio Branco], sem que lhe dessem a menor satisfação ou explicação”. Em plena campanha presidencial, o Marechal Lott denunciou, publicamente, ao presidente Juscelino, o preconceito racial no Itamaraty.

Em seguida à repercussão da denúncia na opinião pública, em 1961, a política, não a burocracia, cedeu brevemente, quando o presidente Jânio Quadros nomeou Souza Dantas como primeiro embaixador negro do Brasil e o enviou para Gana (e, não, para um país europeu).

A pedra inaugural da posição do negro no Itamaraty foi então assentada: haveria, ainda que a contragosto da burocracia diplomática, negros na casa do Barão, porém distinguindo um negro desejável e um negro indesejável.

O ministério que apresenta a imagem do Brasil no exterior não quis e, ainda hoje, não quer que essa imagem reflita alhures a inegável africanidade do país para além do discurso.

O negro, se útil, seria em Gana, não na Suécia; se desejável, seria um pardo claro, não um retinto, independentemente de suas qualificações (foi a absurda negação da entrada no Itamaraty do ex Ministro Joaquim Barbosa – por três vezes) ou alguém é suficientemente superficial para dizer que o diplomata brasileiro é superior, em qualificação, a um ministro do STF – cargo atingido pelo Ministro Joaquim?

Por volta do ano 1970, um jovem afro-brasileiro, que sonhava lutar pela paz no mundo, hoje na atuação contra os equívocos do Itamaraty foi humilhado, ainda quando o Instituto Rio Branco funcionava no Rio de Janeiro: foi pedir orientação para ingressar na carreira de diplomata e a pessoa que o atendeu, o fez entender que estava num lugar errado. Buscou outro caminho (franciscanos) para lutar pela paz que vem pela conquista dos direitos iguais de todos/as – negros e brancos.

É verdade que, 40 anos mais tarde, em 2002, o Itamaraty foi pioneiro na implementação de uma política de ações afirmativas, provendo bolsas de estudos para financiar a caríssima preparação (que envolve provas de 4 idiomas e outras 7 disciplinas) a candidatos, sic, “afrodescendentes”, quase uma década antes da aprovação da Lei de Cotas de 2014.

É também verdade, porém, que, com esse pioneirismo, o Itamaraty pôde especificar – e garantir, antes de ser obrigado ao contrário – muito bem qual “tipo” de negro que, qualquer que fosse a lei decidida pelo legislador, o ministério aceitaria em seus quadros: o poliglota, o educado em cultura europeia, o representante da miscigenação e do mito da democracia racial, enfim, aquele que tivesse todas as características, exceto as físicas de um afro-brasileiro, para representar a diplomacia brasileira.

Nesse sentido, é muito conveniente ao Instituto e ao Ministério a autodeclaração do candidato. Visto que o objetivo da diplomacia não é e nunca foi incluir em seus quadros a diversidade racial afro-brasileira. Premia-se prioritariamente candidatos pardos claros, que nunca receberam um “enquadro” da policia.

Nada muito diferente das respostas que a Educafro recebe, até hoje, em 2024.

Ora, o que ninguém parece querer questionar é o processo em si, ele próprio excludente. As cotas raciais poderiam ser de 50% e ainda assim não se teria um resultado favorável aos candidatos negros quando, até 2023, se exigia fluência em “inglês, espanhol e francês”. A reserva de vagas poderia ser de 80% e ainda assim não se ocupariam todas as vagas quando há provas ao longo de 4 dias e 9 ou 10 horas por dia, inclusive em dias úteis. A política de ação afirmativa poderia prever 100% das vagas e ainda assim não seria efetiva para os negros se o ministério repetisse, como fizeram em 2024, a convocação para a entrevista, presencial em Brasília, com apenas 15 horas de antecedência, impondo custos altíssimos de passagens de última hora aos convocados.

Mas o pior de tudo é a farsa de permitir a inscrição como negro, só com a autodeclaração dos candidados e só colocar a banca de heteroVerificacao no fim do processo. Escancara a porteira para a entrada de brancos desonestos que, com algumas seções de bronzeamento, enganam as bancas de heteroVerificacao.

Agora em 2024, foram aprovados, dentro das cotas, nada menos do que 4 apontados pela Educafro como potenciais fraudadores das cotas raciais, denunciados por não apresentarem, conforme comando legislativo, “traços fenotípicos negros”. E o mais grave: nos concursos anteriores se candidataram como brancos. Lembram do caso do ACM Neto, que pegou bronzeamento para roubar as verbas eleitorais do povo afro-brasileiro?

O perfil idealizado que o Instituto Rio Branco deseja não comporta, nem na teoria nem na prática, o verdadeiro negro brasileiro. E por verdadeiro negro não estamos falando apenas em pretos retintos como Barbosa e Pompilio da Hora, mas os negros com verdadeiros traços negros, e não só uma pele bronzeada e cabelos naturalmente lisos.

E isso porque inclusive os que chegam perto de alcançar os hercúleos padrões de admissão do concurso para diplomata são violentados pelas notas boas dos pardos claros que sempre pagaram cursinhos caros para atingirem excelentes notas e derrubar os afro-brasileiros.

Todos os candidatos que denunciamos, além de não terem fenótipo negro, nunca antes haviam concorrido pelas cotas raciais no concurso do Itamaraty. Sem falar que nunca moveram uma palhaçada na defesa do povo afro-brasileiro que é exterminado pela polícia.

Tentaram por anos, alguns por cinco anos consecutivos, a aprovação na ampla concorrência, e só agora, em 2024, mudaram de categoria e, motivados por seus cursinhos caros (que revelam a fragilidade do processo do Itamaraty), mudaram e concorreram nas cotas de negros.

Isso ocorre anualmente: candidatos não-negros da ampla concorrência cansam de não atingirem os elevadíssimos padrões de seleção e decidem usar as cotas de forma deturpada, não para corrigir desigualdades estruturais históricas, mas para limitar seu uso por seus verdadeiros destinatários, anulando seu objetivo de trazer mais diversidade racial às instituições públicas e de superar o preconceito racial de marca no Brasil.

Infelizmente, essa prática é incentivada pelo próprio Instituto, que não pune e, ao contrário, aprova ano após ano mais e mais candidatos que, “de repente”, descobrem-se negros e mudam de categoria. Isso deveria ser surpreendente, mas não é, visto que, na prática, a diversidade é uma meta secundária no ministério, instituição que prima por um negro desejável, muito bem representado por esses candidatos não-negros com plena passabilidade branca e que dificilmente sofreram qualquer restrição de acesso profissional ou atos racistas ao longo de toda uma vida.

Há relatos gravíssimos, plenamente e propositalmente ignorados pela Diretoria do IRBr, de que parte desses candidatos, todos aprovados, cometeu verdadeira fraude: alguns, sem qualquer traço negroide natural, apareceram bronzeadíssimos na entrevista, como se retornassem de férias no Nordeste; outros não economizaram em pomada de cabelo e baby-liss para criar cachos temporários e tentar um traço negro; há quem tenha ido de boné ou outros apetrechos para mascarar dos colegas cotistas sua não-negritude; há quem tenha sobrenomes (e traços!!) europeus mas tenha apresentado um suposto “laudo antropólogo” comprado na Internet por R$ 1.800,00 ou “exame dermatológico” que sequer fazem sentido nem como conceito nem como fator de identificação racial.

Ora, nunca vi um segurança racista de loja pedir qualquer laudo ou exame antes de me seguir pelos corredores.

De novo, não se trata de limitar a política de cotas raciais aos retintos, ainda que o Itamaraty tenha uma grande, enorme dívida em relação a eles. Trata-se, em verdade, de aplicá-la corretamente aos negros, sejam eles negros-pretos sejam eles negros-pardos. Jamais pardos-brancos, como alerta o voto do Ministro Lewandowisky, na ADPF 186.

E o Itamaraty não o faz porque não quer. Nisso, a diplomacia brasileira é sutil ao impor seu desejo e obsessão pelo pardo claro: o Instituto realiza entrevista presencial, (com data nao definida nos editais) e convocada menos de 24 horas antes. Mais de 90% dos verdadeiramente destinatarios das ações afirmativas não tem dinheiro para ascabsurdas passagens de avião e hotel.

Há apenas uma aparência de formalidade e de seriedade. Temos que combater esse absurdo!

A situação é ainda pior na comissão recursal, composta por três membros e que, para indeferir os recursos daqueles milagrosamente eliminados na primeira entrevista, só pode indeferir um recurso se houver unanimidade. Deste modo, com apenas um voto coringa de alguém despreparado tematicamente, a despeito de eventual oposição dos outros dois membros, defere-se automaticamente a apelação do candidato antes eliminado no resultado preliminar.

É assim que o Itamaraty consegue manter em seus quadros apenas o que entendem por desejáveis.

A Educafro continuará denunciando e acompanhando a aplicação da Lei por este ministério que aparentemente se vê e se posiciona acima dela. Não retrocederemos.

No curto prazo, não aceitamos menos do que a abertura de processos administrativos individuais para apurar cada um daqueles que acusamos como possíveis fraudadores nos concursos com resultado em 2024 (concurso 2023 e concurso 2024), listas já há muito tempo em mãos da Diretora do IRBr.

Especial atenção deve ser dada àqueles que foram negados por outras comissões, mais sérias, de outros concursos e àqueles que apenas agora, após anos na categoria de ampla concorrência, migraram (e ocuparam!) vagas de negros.

A exemplo da Ação Civil Pública n.º 1.16.000.002612/2017-78, de 2017, solicitada pela EDUCAFRO Brasil ao MPF pelas mesmas razões e problemas que, agora, 7 anos mais tarde, se repete.

Continuaremos denunciando e, se necessário, judicializando a antipolítica de ação afirmativa do Itamaraty.

No médio prazo, não aceitaremos menos do que um concurso exclusivo para negros, com vistas à reposição de todas as vagas que nos foram tolhidas ao longo dos últimos 10 anos pela má aplicação das cotas raciais. A AGU já autorizou uma universidade a adotar esse método.

O presidente Lula, em sintonia com o gesto da RAMPA da posse, em ato político, muito demonstraria seu compromisso com nosso povo se desse o primeiro passo nessa direção, contornando a burocracia diplomática desinteressada no povo negro, a exemplo de Lott, de Kubitschek e de Quadros.

Além de interromper as injustiças no concurso atual, é urgente que a Presidência encomende auditoria externa no MRE, com participação da sociedade civil, para apuração individual de todas as nomeações e promoções de candidatos como negros desde o advento da lei de cotas. Queremos, no concurso de 2025 a devolução, em concurso somente para negros/as, das vagas injustamente ocupadas.

No longo prazo, não aceitaremos menos do que um lugar permanente para o povo negro na diplomacia brasileira, povo este que deve ser desejável simplesmente por compor a população brasileira, e não por travestir-se de branco.

Perdoem-me a provocação no  título deste artigo. Não foi revogada a lei de cotas no Itamaraty; lá, na verdade, ela nunca teve plena vigência.

 

*OFM Diretor Executivo da EDUCAFRO Brasil

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