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José Sócrates

Primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011

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O novíssimo ano Trump

Sinto muito, mas, nestas eleições, o povo americano decidiu jogar fora o melhor das suas tradições políticas
06/01/2025 | 15h53

Eis o ano Trump. O fenômeno Trump. E convenhamos — que regresso. Que escalada. Que vitória. Sobreviveu a tudo e venceu todos. Desta vez, ao contrário da primeira, nada pode servir de desculpa — o povo americano tem exatamente o que quis e o que lhe foi proposto. O “transparente charlatão” será Presidente, dando as suas ordens ao mundo para cumprir o seu programa de “tornar a América grande de novo.”

No seu apertado espírito, a grandeza de um país consegue-se diminuindo os outros, tendo já começado pelo Canadá, pela Groenlândia e pelo Panamá. O conjunto das nações reagiu dividindo-se entre a indiferença e o desdém — para já, ninguém o leva a sério. Mas deixemos de lado, por um momento, a política externa e regressemos à vitória de Trump.

Nas explicações políticas para o seu espetacular triunfo parece-me faltar sempre o essencial da história: tratou-se de uma genuína escolha popular. O ponto é embaraçante. Muito embaraçante. Principalmente para os democratas, que acham que o povo escolhe sempre bem. De certa forma, o respeito pela vontade popular leva-nos, com frequência, a confundir a “boa escolha” com a “legitimidade da escolha”. São coisas diferentes: a vitória eleitoral não é critério de boa razão, mas fundamento legal para governar.

Pela minha parte, julgo chegado o momento de dizer que a culpa não foi do sistema eleitoral, não foi da polarização, não foi da parcialidade da Fox News ou da covardia do Washington Post que decidiu não apoiar expressamente Kamala Harris. A culpa não foi da economia, nem de Biden, nem da esquerda, que substituiu as políticas de igualdade pelas políticas de identidade. O problema foi a vontade popular. Não foram as redes sociais, as fake news ou o politicamente correto. O problema foram as convicções do povo americano. Sinto muito, mas, nestas eleições, o povo americano decidiu jogar fora o melhor das suas tradições políticas.

É a primeira vez? Não. Já tínhamos visto isto antes. Já antes, nas primeiras décadas do século dezenove, os americanos, depois de fundarem a sua rebelião nacionalista no valor da liberdade individual, mantiveram um sistema escravagista. Depois, no final desse século e no início do seguinte, evoluíram para o sistema de segregação racial com as leis de Jim Crown. Depois veio o Ku Klux KLan, depois o macartismo, depois o movimento de renascimento cristão, depois a nova direita e finalmente o novo partido republicano — este que agora sobe ao poder.

É uma nova América? Num certo sentido, sim, esta eleição rompe com os valores políticos que têm marcado, nas últimas décadas, a atuação dos Estados Unidos no mundo. Mas, enquanto fenômeno histórico, nada disto é novo. Como alguns autores têm escrito, não é verdade que o povo americano estivesse sempre unido, ao longo da sua história como nação, num alargado consenso à volta dos valores da sua Constituição que, como é sabido, reclama que todos os homens nascem iguais e com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura de felicidade. Não. Muitos americanos sempre viram a América como uma nação branca, protestante e como uma identidade cristã europeia.

A tolerância com os valores liberais só aconteceu quando estes não ameaçavam esta causa. Quando o liberalismo constitucional ameaçou a causa branca e cristã, uma boa parte da América revoltou-se contra eles. Este, no meu ponto de vista, é outro desses momentos.

Estas últimas eleições americanas constituíram, sem dúvida, uma revolta popular contra o establishment político que tem governado a América. No meu ponto de vista, a explicação para este fato só pode ser encontrada no fato de o eixo do poder econômico mundial ter se deslocado do Ocidente para o Oriente. A China, não os Estados Unidos, ganhou a batalha da globalização e o continente asiático tem-se afirmado lentamente como espaço econômico dominante.

Taiwan substituiu Berlim como espaço de disputa geopolítico e a Europa parece desistir da sua posição de “potência normativa” rendendo-se à condição de “potência subordinada”. Seja como for, uma coisa é certa: a brutalidade na política externa, que parece ser a imagem de marca da nova administração americana, nunca foi prova de força — mas de fraqueza. A verdade é que o Ocidente já não determina tudo e esta é a grande novidade à qual o mundo tem de se adaptar — esperando que o faça sem violência. Não há dúvida de que é preciso respeitar a vontade popular, mas não somos forçados a concordar com ela. Não, não somos.

P.S. Fernanda Torres ganhou um globo de ouro num filme sobre a ditadura militar. Que felicidade.

Ericeira, 6 de janeiro de 2025

*José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011

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